Opinião

A impressionante atualidade da crítica política de Lima Barreto

Os interesses dele cobrem ampla gama de conhecimentos, indo das ciências naturais às humanas, denotando compreensão política notável

O ator Hilton Cobra ao lado de uma projeção da imagem do escritor Lima Barreto
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Estou lendo “A Crônica Militante”, excelente coleção de crônicas de Lima Barreto, da editora Expressão Popular.

As crônicas datam de exatamente um século atrás e guardam impressionante atualidade, característica da grande literatura.

A vastidão da cultura de Lima Barreto é impressionante.

Isso pode ser aquilatado até mesmo pela amplitude do vocabulário que utiliza.

Demais, os interesses dele cobrem ampla gama de conhecimentos, indo das ciências naturais às humanas, denotando compreensão política notável.

A título de exemplo, menciono uma das crônicas, que se refere ao livro “Ajuda Mútua” (1902), de Piotr Kropotkine (1842-1921): “A tese central do livro do pensador russo vem na contramão da ‘luta pela vida’ e da ‘sobrevivência dos mais aptos’, de inspiração darwiniana, mas elaborada por Herbert Spencer; deste derivaria a doutrina do ‘darwinismo social’, apoiando o princípio capitalista liberal da concorrência e do enriquecimento dos ‘mais capazes’. Ao contrário, Kropotkine valoriza, com base em documentação colhida no mundo animal da Sibéria, a importância da colaboração para a sobrevivência. De acordo com suas pesquisas, haviam desaparecido preferencialmente os animais que não souberam se associar contra o meio adverso. Daí o estudioso amplia sua reflexão para a história da humanidade, a fim de enfatizar que apenas um fragmento mínimo da longa história do homem na terra elegeu a concorrência como padrão de comportamento.”

No debate político, acho importante deixar claro que essas são as duas posições que se contrapõem na cosmovisão política e que a incorreta interpretação darwiniana levou ao “darwinismo social”, defendido pelo atual desgoverno brasileiro, genocida.

Outra crônica daquele volume ilustra, à perfeição, o atual momento no Brasil: “Afirmou Dostoiévski, não me lembro onde, que a realidade é mais fantástica do que tudo o que a nossa inteligência pode fantasiar.”

Quando o mundo todo propugna o isolamento social, vemos a extrema-direita brasileira e seu líder pedirem o fim do isolamento e a consequente infecção generalizada.

Na mesma crônica, complementa o autor, com incrível atualidade: “E nós poderíamos dizer do nosso resignado Brasil que ele, grande, imenso, rico e generoso, tendo os pés no Prata e a cabeça nas Guianas, com a gravata luxuosíssima do Amazonas ao pescoço, dorme completamente encachaçado, deixando que toda uma quadrilha, com lábias e patoás vários, o saqueie e o ponha a nu… e o ‘dinheiro’ é a burguesia que açambarca, que fomenta guerras, que eleva vencimentos para aumentar os impostos e empréstimos, de modo a drenar para as suas caixas fortes todo o suor e todo o sangue do país, em forma de taxa alta de juros e apólices. Precisamos deixar de panaceias; a época é de medidas radicais.”

Lima Barreto

A direção do Partido dos Trabalhadores, ao menos, parece ter acordado do engano em que se achava e acaba de assumir, ainda que tarde, o “Fora Bolsonaro”.

Pois tarde nunca é para a verdade libertadora. À propósito, na mesma belíssima crônica, o autor recorda: “Há um epitáfio de um navegante grego, antigo, encomendado por ele mesmo, caso morresse de naufrágio, que assim diz: “O marinheiro que aqui jaz diz-te: faze-te de vela! O golpe de vento que aqui nos perdeu fazia vogar ao largo toda uma flotilha de barcos alegres.”

A verdade, com efeito, supera a própria vida, transcende-a, liberta dos erros cometidos, dos enganos incorridos, dos atalhos da dor, em vão tentados.

Em outra crônica ainda, o autor sumariza a função social da propriedade, corrigindo erro que remonta à Revolução Francesa, de assimilar o direito à propriedade – um direito civil, pactuado – aos direitos humanos, que não estão vinculados a pactos, sendo, ao contrário, fundamentais, universais: “A propriedade é social, e o indivíduo só pode e deve conservar, para ele, de terras e outros bens, tão somente aquilo que precisar para manter a sua vida e de sua família, devendo todos trabalhar da forma que lhes for mais agradável e o menos possível, em benefício comum.”

Em outra das crônicas, parece contemplar as raízes da Lava Jato: “Esclarecido assim Vossa Excelência sobre a feição psicológica especial à nossa alta polícia, pedia eu a Vossa Excelência que voltasse as vistas para as centenas de pessoas que o Senhor Aureliano anda arrebanhando para os seus cárceres sob o pretexto de serem anarquistas e conspiradores, acusações que ele não baseia em documento algum…”.

No âmbito das relações exteriores, o autor não poderia ser mais visionário, certeiro e inteligente: “Falo, sem temor, dessas cousas da política internacional porque conheço o estofo dos pedantes que a querem fazer coisa transcendente. Eles o que pretendem é tapar o sol com uma peneira; e, nesse caso dos Estados Unidos, disfarçar a sua falta de hombridade, de decoro, de vergonha, de orgulho, com um palavreado oco e parlapatão. Não há livros verdes ou de todas as cores do arco-íris que possam negar a triste e ignominiosa verdade de que o Brasil está sendo caudatário desavergonhado da América do Norte.”

Passou-se um século e voltamos ao ponto de partida, mas, como dito antes, se a verdade liberta e transcende, o mal, conquanto possa retornar, não se impõe para sempre e a liberdade, como lembra a bandeira da inconfidência mineira – que o atual governador tenta inutilmente manchar, mas que o prefeito de Belo Horizonte resgata – ela chega, ainda que possa tardar.

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