

Opinião
A imprensa e suas liberdades
O exercício do pleno direito à opinião e à informação é incompatível com o controle exercido pelos monopólios midiáticos


O ataque desvairado do deputado Douglas Garcia à jornalista Vera Magalhães detonou explosões de indignação nos profissionais da mídia brasileira. Reações justíssimas e bem-vindas. Nesse momento são reiteradas as agressões às liberdades, especialmente àquelas abrigadas no direito de expressão e crítica.
A propósito de defesas e ataques à liberdade de expressão, Milly Lacombe, em sua coluna no UOL, fez uma avaliação dos comentários de Vera Magalhães a respeito de episódios recentes na conturbada vida política dos Tristes Trópicos:
“Quando a caravana de Lula foi recebida a pauladas no Sul do Brasil, Vera disse que pedradas faziam parte da política. Quando Lula foi ao velório de dona Marisa, Vera debochou e sugeriu que nos casássemos com alguém que não fosse fazer comício em seu velório. Quando Manuela D’Ávila foi 62 vezes interrompida no Roda Viva, Vera disse que era do jogo e que estava acostumada a atuar em ambientes cheios de homens, indicando que Manuela fazia drama ao reclamar da impossibilidade de concluir um pensamento sequer. Quando Boulos foi contratado como colunista da Folha, Vera democraticamente sugeriu que ele fosse desligado, dado que, segundo ela, Boulos estava associado ao banditismo”.
Entre os direitos a serem preservados na sociedade democrática de massa ressalta a preciosa garantia do acesso à informação e, sobretudo, à diversidade de opinião. Vera Magalhães, no exercício de suas prerrogativas, buscou impedir que Boulos as exercesse. Há tempos, escrevi nas páginas de nossa brava e sobrevivente CartaCapital a respeito do relatório final da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa, nomeada pelo Congresso dos Estados Unidos no imediato pós-Guerra. Concluído em 1947, o relatório advertia: existe uma razão inversamente proporcional entre a vasta influência da imprensa na atualidade e o tamanho do grupo que pode utilizá-la para expressar suas opiniões. Enquanto a importância da imprensa para o povo aumentou enormemente com o seu desenvolvimento como meio de comunicação de massa, “diminuiu em grande escala a proporção de pessoas que podem expressar suas opiniões e ideias através da imprensa”.
O relatório procurou apontar “o que a sociedade tem direito de exigir de sua imprensa”. Definiu duas regras essenciais para o legítimo exercício da liberdade de informação e de opinião: 1. “Todos os pontos de vista importantes e todos os interesses da sociedade devem estar representados nos organismos de comunicação de massa”. 2. “É necessário que a imprensa dê uma ideia dos grupos que constituem a sociedade. Dizer a verdade a respeito de qualquer grupo social – sem excluir suas debilidades e vícios – inclui também reconhecer os seus valores, suas aspirações, seu caráter humano.”
Os senhores da mídia empenham-se em abastardar as faculdades de compreensão dos indivíduos
As recomendações exaradas no relatório da Comissão sobre a Liberdade de Imprensa refletem o espírito do tempo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental: a aposta no aperfeiçoamento dos processos de controle democrático sobre o Estado e o poder privado. O trauma das duas guerras mundiais e da Grande Depressão saturou o ambiente intelectual dos anos 40 do século XX da rejeição ao mercado despótico e ao totalitarismo político. O sociólogo Karl Mannheim, pensador representativo de sua época, escreveu, em 1950, no livro Liberdade, Poder e Planejamento Democrático: “… não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão”. Para Mannheim, deve-se temer menos os governos, que podemos controlar e substituir, e muito mais os poderes privados que exercem sua influência no “interior” das sociedades capitalistas.
Na aurora do século XXI, as forças democráticas sobreviventes, aqueles que ainda conseguem respirar no “admirável mundo novo” construído pelo capitalismo da finança e das fake news, mal conseguem defender o que restou dos direitos sociais e econômicos obtidos pelos subalternos no imediato pós-Guerra. Os meios de comunicação empresariais nativos reivindicam a neutralidade e a isenção. Ingenuidade ou excesso de esperteza? O relatório de 1947 não advoga a neutralidade impossível, mas reconhece a disparidade de situações sociais e defende a diversidade de visões do mundo. Compelida pela disputa de audiência, a mídia contemporânea, não raro, é arrastada para o abismo da vulgaridade. O âncora do Jornal Nacional, William Bonner, conseguiu escapar, certa vez, de seu teleprompter: confessou que a grande mídia repercute e realimenta as simplificações e slogans no afã de manipular a “massa informe dos Homer Simpsons”.
Para manter o status quo, os senhores da informação e da opinião empenham-se em abastardar as faculdades de compreensão dos indivíduos entregues à solidão em meio à bulha das multidões. No interior da sociedade de massa, a relação perversa entre a linguagem midiática e o desamparo dos indivíduos sem relações acolhedoras instiga a prática de tropelias e brutalidades. As redes sociais, prometidas como o espaço do movimento livre de ideias e opiniões, transformaram-se num calabouço policialesco em que a crítica é substituída pela vigilância. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida disposta ao linchamento. Não se trata de compreender o outro, mas de vigiá-lo. As boas intenções naufragam nas águas profundas e traiçoeiras das oligarquias globais.
A defesa da liberdade de opinião e de informação é fundamental para a sobrevivência do espaço público democrático, mas incompatível com o controle social e político exercido pelos monopólios midiáticos. Esses poderosos e seu séquito empoleirado nas redes antissociais defendem seus privilégios com eficiência crescente numa sociedade encantada pela “inversão” de significados e pelo ilusionismo da liberdade de escolha do indivíduo-consumidor.
O leitor atilado há de julgar se, no Brasil, a liberdade de opinião e de informação tem se ampliado e favorecido o esclarecimento dos cidadãos ou se transformado em seu contrário, um exercício do poder monopolista que viola os direitos reconhecidos como essenciais. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A imprensa e suas liberdades “
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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