Opinião

A ideia de liberdade de expressão para fascistas

Como podem governadores e parlamentares requererem o perdão para aqueles que maquinaram a supressão da própria democracia que os elegeu?

A ideia de liberdade de expressão para fascistas
A ideia de liberdade de expressão para fascistas
Inimigos internos. Os Antifa agora são considerados terroristas, enquanto a Casa Branca elege a fundação de George Soros como alvo preferencial – Imagem: Amy Osbourne/AFP e Redes Sociais
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“Para nós, antifascistas, os fascistas nunca deveriam ser permitidos falar em público. Nunca.”
— Niccolò, antifascista italiano

Esse é um debate relevante para o Brasil. Vemos pessoas públicas defenderem anistia a criminosos, como se a defesa de um ato delitivo não constituísse — ela também — crime. Se olharmos de um ponto de vista objetivo, não se deveria limitar a liberdade de expressão daqueles que propugnam o próprio fim do regime democrático? A democracia não requer respeito, proteção, promoção e provisão?

Como podem governadores e parlamentares requerer, em público e de tribunas, o perdão para aqueles que maquinaram a supressão da própria democracia que os elegeu e lhes garante a palavra? Essa liberalidade, que não se confunde com liberdade — pois é a sua distorção —, leva a absurdos como a outorga do Prêmio Nobel da Paz a Maria Corina Machado, que, a exemplo da famiglia Bolsonaro, pediu intervenção estrangeira em seu país, a Venezuela, para reverter o resultado das eleições que perdera.

Dessa forma, o prêmio carece de credibilidade e a Europa afunda ainda mais sua imagem de continente que tem a democracia como bem instrumental, mas não absoluto. Usa-a quando lhe convém; descarta-a quando a vontade popular lhe é desfavorável.

Nesse sentido, onde encontrará autoridade para fazer face à ascensão do fascismo? De onde extrairá legitimidade para limitar a marcha do autoritarismo que a destruiu em duas guerras mundiais e levou o mundo à beira da catástrofe nuclear?

Os fascistas baseiam suas políticas no terror; porém, como já dissera São João: “No amor, não há temor.” Então, por que muitos ocidentais, em sua maioria cristãos, identificam-se com essa ideologia do medo? Por que se permite que seja abertamente apregoada?

A extrema-direita israelense não chegou ao cúmulo de transformar a estrela de Davi em símbolo de crimes crimes tão graves quanto os dos nazistas e fascistas no século passado? Para medir a lama que os envolve, basta, paradoxalmente, mirar o Davi de Michelangelo.

Nele, o gênio renascentista traz a arte para seu povo — ou, melhor, coloca o povo na arte. Com efeito, ele abandonou o ideal grego de beleza, dos clássicos, para atribuir àquele que derrotaria o gigante filisteu opressor, com uma simples funda, a imagem de um jovem italiano agricultor, de mãos e pés grandes, como que plantado em sua terra.

Essa, na verdade, é uma das características do Renascimento que muitas vezes nos escapa: fazer do povo modelo para a arte, inserindo-o nela, assim contextualizando-a, atualizando-a e encarnando-a, num processo tão profundo que atinge a esfera espiritual. Não é o que faz, por exemplo, Caravaggio, com seus modelos de pessoas do povo e até prostitutas como modelos para a própria Virgem Maria? Não foi a companhia deles que seu filho, o Cristo, buscou quando esteve na Terra?

Isso dito, podemos e devemos aprender com aqueles que têm posições contrárias e até antípodas. Entretanto, para que isso possa acontecer de forma pacífica e livre, é necessário garantir um marco democrático, de tal sorte que as posições possam expressar-se de maneira destemida. Justamente essa é a moldura que os fascistas não respeitam e querem destruir, sabedores de que o debate franco em nada os favorece; ao contrário, per se aniquila os preconceitos que lhes fundamentam o pensar, como a aporofobia, a homofobia, a xenofobia etc.

Dessa maneira, até Donald Trump, com seu slogan “Faça a América Grande Novamente” (MAGA, na sigla em inglês), indica o caminho da derrocada em que, contrariamente ao mote acima, conduz seu país. Para isso, basta notar o objetivo primordial de sua política externa: a pilhagem dos minérios, inclusive petróleo e terras raras.

Ora, quando uma moeda perde valor, aonde se vai buscar lastro para a riqueza? Historicamente, no ouro. No entanto, com a evolução tecnológica, outros minérios, como as terras raras — tão necessárias para os eletrônicos —, adquiriram igualmente valor. Daí as barganhas que a diplomacia estadunidense tem proposto à Ucrânia, Palestina, República Democrática do Congo, Armênia, Azerbaijão e até à Argentina, de quem obteve privilégios para a aquisição de lítio e urânio, em troca de empréstimo que permita ao colonizado presidente argentino não perder as próximas eleições por uma margem tão avassaladora de votos. Não é outra a razão da agressão contra a Venezuela, a maior reserva de petróleo do mundo, às portas dos EUA.

Ou seja, Trump busca alternativas de valor ao dólar, porque o sabe frágil e fraco (como demonstra sua desvalorização em relação ao real), fruto de uma política econômica — mas não apenas — desastrosa e desastrada, que não poderá conduzir o país senão a uma queda ainda mais rápida e trágica, com reflexos para toda a humanidade.

Vale notar que, em Antifa: O manual antifascista (Autonomia Literária), Mark Bray cita a entrevista com um antifascista grego: “Quando perguntei a Yiorgos […] sobre a ideia de liberdade de expressão para os fascistas, ele apenas riu e disse que a noção de ‘nenhuma liberdade de expressão para os fascistas’ é muito clara aqui na Grécia […] esse tipo de debate é muito norte-americano.”

Bem, temos aí algo interessante em que pensar — e sobre o qual, talvez, debater.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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