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A hora e a vez de se responsabilizar pelo momento político e resistir

É preciso insistir na subversão da burrice e no reencontro dos corpos, para além das telas

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“O abismo vivido pelo Brasil foi escavado por silenciamentos. Em particular pelo silenciamento das vozes de mulheres, no caso de Marielle Franco literalmente. A melhor maneira de enfrentar a opressão que se infiltra desde o cotidiano, nos pequenos atos e nas pequenas desistências, dia após dia um pouco mais, é falar. Junt@s. Mulheres e homens que amam as mulheres: “ninguém solta a mão de ninguém”. Não sabemos quando acabará. Mas o fim do que só começou – ou continuou – depende do tamanho da resistência. E da capacidade de voltar a dar significado às palavras pelo debate e pelo confronto das ideias. O Brasil não pode mais tolerar silenciamentos. Como enfrentar a opressão? Recusando-se a silenciar.” [1]

Há tempos que vivemos no Brasil uma crise que não é só de identidade, mas também de palavra. Há muito já se tem dito que vivemos o tempo da “autoverdade”[2] ou da pós-verdade, mas a questão que circunda parece sempre a mesma: afinal, como chegamos até aqui?

Longe de tentar chegar a qualquer conclusão sobre essa questão, afinal a conclusão parece ter sido mais uma armadilha tentadora que apenas nos trouxe até esse lugar comum de dizeres violentos e sem sentido, talvez seja a hora de começar a juntar os pedaços desse emaranhado de contradições.

Entre a fala sobre quem veste azul e rosa, o discurso em libras, a condescendência disfarçada de protagonismo feminino, os pacotes de repressão com alvo certo – a nova velha política da lei para todos, desde que esses todos não sejam espelhos dos nossos privilégios –, temos as palavras que ameaçam e, mais do que isso, perfuram a vida.

Era a hora de dizer: quando chegamos no ponto de um deputado federal eleito não tomar posse e ir embora do país porque teme pela própria vida, é porque algo nessa trama disfarçada de cordialidade se perdeu.

Mas a verdade, se é que podemos chamar qualquer coisa de verdade, é que já perdemos e faz tempo, desde que a cabeça da Marielle foi alvejada por quatro tiros e foi preciso continuar lutando pela dignidade da sua existência mesmo depois da sua execução.

Para quem gosta de história, não só a escrita, mas aquela que circula solta pelas construções de palavras faladas, não deve ser muito difícil perceber que há tempos não se faz mais possível encontrar um percurso minimamente real para a narrativa que hoje se apresenta – e nos apresenta como povo e como nação. A superficialidade com que tratamos nossos mortos, sejam esses mortos reais ou simbólicos, já deixou bem claro: quando a palavra perde o peso do que enuncia, quando a palavra basta por si só, porque basta dizer, seja o que for, é a palavra que ameaça e é a palavra que também mata.

O que o momento político atual parece evidenciar é que em algum momento do percurso os velhos lugares das castas sociais que a elite brasileira insiste em manter foram desestabilizados. E o que fica evidente é que as mulheres foram protagonistas em permitir que os lugares de fala fossem ocupados pelas várias identidades de gênero e de raça.

Mas era de se esperar que essa ocupação não seria fácil, ainda mais quando estamos em uma sociedade moldada por uma elite dominante que só sabe clamar por mais e mais privilégios, os quais denomina direitos, apesar de não admitir que os outros também os alcancem, e desresponsabilizar a si mesma.

Como então era possível que a Marielle Franco conquistasse espaço, fosse eleita, fosse ouvida, sendo negra, lésbica e criada na favela da Maré? E o Jean Wyllys, um gay, nordestino, negro, que não silencia diante da violência?

Não sejamos medíocres com a história, não vai bastar as milhões de curtidas, o discurso raso e o velho racismo transvestido de culturalismo[3], quando o fantasma dos nossos mortos bater à nossa porta (aos desavisados, essa é uma metáfora). Não vai ser suficiente para explicar aos nossos filhos que não aprendemos com os nossos erros porque continuamos insistindo em enxergar o homem branco (cis e heterossexual) bem-sucedido (ou o que este mesmo homem determina) quando nos olhamos no espelho.

Não é nenhum mistério a quem ainda consiga interpretar os enredos para além de seus disfarces e seus clichês anticorrupção, que, em grande parte, o poder tem sido exercido em nossa história pelo controle dos corpos, em especial femininos, do sexo e da reprodução.

Foi o corpo da Marielle que foi covardemente impedido pelos quatro tiros de continuar a lutar e a ocupar seu lugar de mulher, negra e lésbica na política brasileira. Agora é o corpo do Jean que precisa se retirar para também não ser alcançado pelos mesmos tiros. E sim, são os mesmos tiros, os tiros da opressão, da homofobia, da misoginia, do racismo. São sempre tiros que ferem a nossa a existência, mesmo que esses tiros venham por meio das palavras.

Um país que insiste em se construir pela desresponsabilização com seus extermínios, não pode escrever outra história repetidamente que não a da exclusão de si mesmo.

Ouso ir mais longe, um Estado que se desresponsabiliza pelos seus excluídos, seus presos, seus internados e pelas mazelas sociais que as palavras tão rebuscadas em seus papéis timbrados sequer alcançam, tampouco pode resgatar um mínimo da dignidade da pessoa humana, pilar fundamental da nossa – suposta – (C)constituição.

Se hoje estamos à beira do abismo do impasse criado pela palavra vazia que legitima a violência, seja do Estado, seja do cidadão, não poderia haver ainda espaço para heroísmo infantil, que hoje se entrega em pacote.

É necessário ir além para que as amarras sejam expostas e as tramas parem de nos enredar na velocidade frenética das redes com a clara intenção de que continuemos paralisados.

Pouco importa agora se existem ou não cortinas de fumaças para as supostas verdades que existiriam escondidas nessa história de terror contada como se fosse conto de fadas pela narrativa da mesma e velha elite dominante de sempre. Nos manter em debate eterno sobre quem enxergou mais (e melhor) o plano maquiavélico é, no mínimo, alimentarmos a mesma narrativa que nos trouxe até aqui e contra a qual insistimos que estamos resistindo.

Resistir é sim escrever, ocupar os espaços, reescrever a história, mas o resistir que não silencia me parece ser principalmente aquele em que palavra e corpo falam. Se eles vêm com as armas, é preciso deixar as portas das nossas casas abertas e derrubar os muros dos condomínios que nos cercam. A recusa ao silenciamento só poderá existir se para proteger as Marielles e os Jeans estejamos dispostos a como eles expor os nossos corpos.

O tempo de achar graça acabou. Enquanto eles fazem barulho para encobrir o vazio de ideias, na lógica perversa do fascista que acusa o outro de manipulação ideológica quando é ele o manipulador[4], é preciso insistir na subversão da burrice e no reencontro dos corpos, para além das telas. E é preciso parar de deixar que apenas os mesmos corpos se coloquem na linha de frente, enquanto nós, privilegiados, seguimos escrevendo bonito sobre o que acontece bem longe dos nossos muros.

“Os ditadores de espírito nunca morrem. Estes estão sempre aí. Estão aqui, neste momento, alguns deles, esperando a hora de voltar. Sempre! Esta luta não acaba. E se nós descansarmos, eles voltam”. (Lédio Rosa de Andrade, que ao contrário dos ditadores, morre, mas também ao contrário deles, é eterno).

Ana Carolina Bartolamei Ramos, Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, Membra da Associação Juízes para a Democracia e mãe do Raul. Escreve na coluna Sororidade em Pauta.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil


[1] Eliane Brum, https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/21/opinion/1542809746_443796.html
[2] Eliane Brum, https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/opinion/1539019640_653931.html
[3]SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
[4]BRUM, Eliane. https://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/09/opinion/1447075142_888033.html.

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