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Opinião

Mano Brown aponta uma visão vanguardista para os novos tempos

Tendo em mente o alerta do líder dos Racionais MCs, é preciso reinventar a maneira de fazer política interna e externa

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“Deixou de entender o povão, já era. Se somos o Partido dos Trabalhadores, o partido do povo, tem de entender o que o povo quer. Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber. Minha ideia é essa.” Assim Mano Brown definiu o processo pelo qual os movimentos progressistas brasileiros (entre eles o PT) deveriam passar para enfrentar o resultado das últimas eleições, tida por ele como definida àquela altura (corretamente). Era preciso reinventar as opções e maneiras de uma política inclusiva, popular e fraterna no e do Brasil. E ainda é.

Para os que desejam uma transformação estrutural da injusta sociedade brasileira e de suas mais graves distorções, há que se perceber que elas também são resultado de fenômenos maiores do que o Brasil. Por isso, mais do que o espanto e a indignação, são necessárias novas interpretações e estratégias para pensarmos e posicionarmos o Brasil diante deste atual mundo em convulsão. É hora de digerir o processo atabalhoado gerido desde 2013 e sair do ritmo alucinante que cega uma análise mais plena do que fomos, onde estamos e para onde iremos como país. Internamente e externamente.

O momento atual, de fechamento-obscurecimento da postura internacional estatal oficial brasileira frente aos problemas e agendas globais nos obriga a pensar em outros caminhos. E como não é mais possível seguir uma estratégia autônoma da política externa nacional, é chegada a hora de repensarmos as possibilidades de ação imediatas, que podem indicar caminhos inovadores e muito mais interessantes e em uma agenda mais progressista em todos os sentidos. Uma política externa que seja calcada nos problemas e soluções concretas para a vida das pessoas, que seja definida pela participação popular e que busque localmente o desenvolvimento social e ambiental. Mas como fazer isso de verdade?

A política externa altiva e ativa, que colocava o Brasil como liderança de um mundo inclusivo e cooperativo a partir do Sul Global, também trazia em si um projeto de desenvolvimento, no incentivo das empresas brasileiras no exterior. Ao mesmo tempo em que tentava “redesenhar a geografia” mundial com iniciativas como o Mercosul Social, a Unasul, o Fórum Ibas, os Brics, o G-20, e alianças estratégicas com África e países árabes, também expandia internacionalmente os serviços e vendas das grandes “campeãs” da engenharia, dos minérios, carnes, grãos e do petróleo brasileiro. Neste sentido aquele Brasil se impunha mundialmente de uma maneira não-violenta, com instrumentos sofisticados de política, mas mantendo-se tradicional no comércio. Esta política externa dos anos Lula/Amorim foi definida popularmente como a “Doutrina Chico Buarque”, já que segundo o artista, nestes anos o Brasil “nem falava grosso com a Bolívia, nem fino com o Estados Unidos”.

Depois do esgotamento “forçado” desta política externa, não é mais possível querer voltar no tempo. É necessário absorver os elementos positivos passados (autonomia e busca por políticas e cooperação) e acrescentar novos elementos a uma política externa nacional que não se baseie e não dependa do Itamaraty para existir, e que tenha focos e atenção especiais no desenvolvimento social e econômico local, agora de maneira sustentável. E há um grande acúmulo social, cultural e político que pode ajudar a tornar isso possível.

Desde os anos 1990, governos locais brasileiros como as capitais Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Fortaleza, Recife, e não-capitais como Santo André, Guarulhos, Osasco, Canoas, Jaboatão dos Guararapes, Contagem, Várzea Paulista, entre outros, criaram assessorias, departamentos e secretarias locais de relações internacionais, que mudavam a forma de se fazer política externa. Não preocupada com a “grande política”, era muito mais voltada para as “pequenas soluções”, que a partir de alianças internacionais teriam impacto imediato na vida do cidadão: a mobilidade urbana, o tratamento de resíduos sólidos, a participação popular, a agricultura urbana – do local para o global e vice-versa. Ao mesmo tempo em que os grandes lobbies econômicos mundiais (como os do petróleo, das armas e dos remédios) agiam pelas grandes políticas dos países, as soluções locais, como ciclovias, o transporte público, a educação cidadã, a cultura nos bairros, o orçamento participativo, as praças e parques para prática de esportes e do bem-estar, agiam em contraposição. Para cada lobby internacional poderia e pode haver uma pequena solução criativa com grande impacto local.

Desde a mesma época, movimentos sociais brasileiros dos direitos humanos, do mundo do trabalho e ambientalistas começaram a se organizar e participar dos fóruns internacionais com ou apesar das políticas nacionais. Também desde os anos 90, a própria Organização das Nações Unidas começou a abrir espaço para a participação de movimentos sociais e governos locais em suas agendas globais. Para a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, por exemplo, a participação social e de governos locais foi essencial para uma evolução significativa dos parâmetros sociais em escala global até 2015.

Desde então, a nova agenda global com metas até 2030 – os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – que preveem acabar com as mazelas sociais e reinventar o desenvolvimento preservando o meio ambiente – está lançada e já foi assinada por mais de 190 países, inclusive o Brasil. E sociedade civil e organizações internacionais de governos locais se mobilizam para traduzir esses objetivos em ações concretas a nível local, com uma nova agenda urbana mundial: em cada estado, metrópole, município e bairro, somente possível com a participação de todos – do vizinho ao governador.

Por isso já passa da hora de governos estaduais como os do Maranhão, Bahia, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, importantes cidades capitais e não-capitais, estruturarem equipes próprias de relações internacionais, que possam buscar exemplos positivos para aperfeiçoarem suas políticas públicas, tendo voz no debate internacional, mostrando seus desafios e resultados exitosos e fazendo uma nova política, sobretudo mais feminina: fraterna, participativa, cooperativa e não-violenta.

Movimentos sociais e governos locais realmente modernos, que alinhem e concretizem suas políticas de acordo com as metas globais, com participação efetiva da sociedade e soluções virtuosas e concretas para a vida das pessoas, poderão se apresentar como alternativa viável ao caos que nos inunda e aterra cotidianamente. Se Chico Buarque definiu com maestria os anos Lula, Mano Brown aponta uma doutrina vanguardista para os novos tempos. Tendo em mente o seu alerta, é preciso reinventar a maneira de fazer política (interna e externa) e envolver os cidadãos na consulta, na implementação e nas soluções para um mundo mais humano e sustentável. A maneira, a agenda e os atores já existem. Falta imaginação, organização e ação.

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