Opinião
A história de um hotelzinho que não bota fé em 2020
Passaram-se os trinta e um dias de dezembro e quando janeiro chegou, nada
Foi em meados de mil novecentos e noventa e sete que eu bati os olhos pela primeira vez naquele luminoso que fica na fachada de um hotelzinho localizado na Rua Catão, na Lapa, em São Paulo, quase em frente ao shopping.
Era um luminoso desejando Feliz 1997, já quase no final do ano. Primeiro, achei que tinham esquecido ali aqueles votos, mas com o passar dos dias, das semanas, dos meses, percebi que aquele luminoso Feliz em branco e 1997 em vermelho era uma coisa quase permanente, que durava 365 dias.
O ano de 1997 foi chegando ao fim e minha ansiedade crescendo. Descia todos os dias do ônibus Vila Anastásio, quase em frente ao hotel. O luminoso, via de longe, antes do ônibus estacionar no ponto e abrir as portas.
Quando chegou a véspera do Natal, minha surpresa foi ver o luminoso apagado. Mas, no dia seguinte lá estava ele brilhando: Feliz 1998.
Foi quando o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos foi assassinado por cinco estudantes em Brasília e Gustavo Kuerten venceu em Roland Garros. Estávamos no ano chinês do Boi, o sucesso nas rádios eram as Spice Girls e os Titãs do Iê-Iê-Iê, uma época em que o povo amarrava o tchan e segurava o tchan.
Nas livrarias, o best-seller era Harry Potter e a Pedra Filosofal e nas noites de televisão, o sucesso era o Rei do Gado. Marisa Orth estava nas bancas, nua na Playboy, enquanto chorávamos a morte de Chico Science, Paulo Freire e Madre Teresa de Calcutá.
Mas não é disso que quero falar.
Quero falar do hotelzinho na Rua Catão. Na verdade, um motelzinho despistado em hotel. Uma guarita envidraçada, uma garagem secreta, um leve cheiro de Bom Ar que vinha lá de dentro, mas tudo muito simples e discreto. O Feliz 1998, sempre muito frequentado por pessoas que desembocavam da Estação Ciência da CPTM e caminhavam a pé até ele, sedentos de amor.
Todo dia útil passava na porta e via casais de mãos dadas, felizes, saindo lá de dentro, deixando para trás um ar de mistério. De vez em quando um automóvel virava à esquerda e entrava direto na garagem, a conta acertavam depois. Clientes assíduos.
Vi o luminoso passar de 1997 para 1998, depois para 1999 e quando chegou dezembro, minha ansiedade era maior ainda. Queria ver o novo luminoso anunciando um Feliz 2000 e, antes mesmo do Ano Novo, lá estava ele, branco e vermelho, iluminando a calçada.
Veio 2001, 2002, 2003… 2019. No dia 20 de dezembro do ano passado, o último dia do ano que passei por ali a caminho das férias, encontrei apenas iluminado o Feliz e o Hotel. Não havia 2020.
Passaram-se os trinta e um dias de dezembro e quando janeiro chegou, nada. Triste da vida, pensei com os meus botões que o dono do hotel, sem fé em 2020, simplesmente transformou seu negócio em Feliz Hotel.
Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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