Nirlando Beirão

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Nirlando Beirão é redator-chefe da revista CartaCapital

Opinião

A história da princesa que trocou a Europa por um playboy brasileiro

Biografia de Ira von Fürstenberg lembra seu desterro paulista com o Latin Lover Baby Pignatari

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A Pan d’Oro era uma venerada padaria de nome italiano, mas de proprietário português, como haveria naturalmente de ser. Ficava a 40 metros da Praça do Vaticano, onde o bonde que descia pelo Jardim Europa fazia a volta, para depois galgar a Avenida Europa, acima, e a Rua Augusta, vencendo o espigão da Avenida Paulista em direção ao Centro Histórico de São Paulo. A padaria dava as costas para o terreno arborizado, toda uma quadra, onde o prefeito Fábio Prado plantara um casarão de clássica compostura. A estreita Rua Iguatemi ainda não fora substituída pela ampla Avenida Faria Lima. A escolha do prefeito era geopolítica: ele acreditava que a São Paulo do dinheiro iria se expandir em direção à Cidade Jardim e o Morumbi, do lado de lá do Rio Pinheiros.

Certo dia, no início dos anos 1960, o dono da padaria reconheceu numa atraente freguesa a invariável figura presente todas as semanas nas páginas de O Cruzeiro e Manchete: “Oh pá, tenho uma princesa no meu estabelecimento”. Ira von Fürstenberg, grande dame da nobiliarquia europeia, comprava suas bisnaguinhas plebeias na desavisada Pan d’Oro. O arisco português entendeu a oportunidade que lhe descortinava. Em pouco tempo, estaria vendendo brioches, croissants, fiambres espanhóis, camembert de França, gorgonzola italiano, chocolates belgas e outros petiscos dignos de nobres paladares. Entendeu que era o último empório na rota dos endinheirados do Morumbi. Daí foi um pulo para se tornar um european bar perfumado pelo scotch 12 anos dos cavalheiros de corrente de ouro e a fragrância Givenchy das moçoilas emancipadas.

Nobiliarquia do trabalho: ela, sobrinha de Gianni Agnelli. Ele, um Matarazzo

A princesa Ira viera a dar com seus costados nos tristes trópicos pelos braços daquele que foi seu segundo marido (e ela, a terceira consorte dele). Francisco Baby Pignatari a conhecera no frescor de seus 20 anos, recém-separada do príncipe Alfonso von Hohenlohe, aliás, Alfonso Maximiliano Victorio Eugenio Alejandro María Pablo de la Santísima Trinidad y Todos los Santos zu Hohenlohe-Langenburg, e a seduzia com a notória lábia de um Casanova de verve cosmopolita. Embora Baby tivesse aviões particulares – que eventualmente ele próprio pilotava – para compensar a distância de Marbella, St.-Tropez e outros baluartes do jet set, trazer Ira para o Brasil foi tarefa mais melindrosa, saudada pela imprensa nativa com os fogos de artifício de uma apropriação duvidosa. Ela virou “nossa princesa”, à falta de uma casa real que merecesse verdadeira admiração.

(Foto: Keystone Press Agency/Keystone USA via ZUMAPRESS.com)

Sua Serena Alteza Virginia Caroline Theresa Pancrazia Galdina zu Fürstenberg – Ira, para os próximos – tem tanto pedigree aristocrático quanto nomes. Nasceu em Roma, de pai nascido na Bélgica, mas de sangue alemão, Tassilo zu Fürstenberg, e mãe italiana, Clara Agnelli, irmã de Gianni Agnelli e fina flor da dinastia que fundou a Fiat. Na árvore genealógica de Ira não faltam uma condessa húngara, sua avó, uma milionária norte-americana, bisavó, um príncipe tcheco, seu primo, a ilustre fashion designer Diane von Fürstenberg, cunhada, e seu irmão, o príncipe Egon, que também se notabilizou como estilista.

E, de repente, essa criatura com tantos penduricalhos de nobreza decide seguir o coração e aceitar o exílio sul-americano ao lado daquele a quem os colunistas se referiam como “o playboy número 1” (Life Magazine). Para apimentar o perfil do pretendente plebeu, dizia-se que o esporte dele era destroçar carros de luxo, o que parecia nem um pouco traumático para quem era uma das maiores fortunas da América Latina.

Baby pagava o preço, no guichê da mídia bisbilhoteira, de ser um cavalheiro de belo porte e de não esconder a coceira que lhe fazia a proximidade com mulheres formosas e estrelas do cinema. Na verdade, ele também pertencia a certa fidalguia, não a de sangue azul, mas a da meritocracia empresarial. O Pignatari do sobrenome vinha precedido pelo Matarazzo da mãe, filha daquele Francisco Matarazzo que fizera a América a partir de umas tantas latas de banha de porco. Baby exercia o mesmo hobby do avô patriarca, o trabalho – o que contraria a fama habitual de um playboy mimado pela herança. Dava duro. Multiplicou sua fortuna como industrial na área da metalurgia.

(Foto: Mondadori Portfolio via ZUMA Press)

Linda, rica, bem-nascida, a princesa europeia resignou-se alegremente ao desterro brasileiro, sem se mostrar nem um pouquinho luxenta. Fazer as compras do lanche era rotina. Difícil seria convencê-la de que não sentiria falta dos castelos e casarões de sua infância e juventude. O endereço do casal em São Paulo tinha um ar de jungle. Era uma gigantesca chácara de floresta atlântica que escorria de uma colina do Morumbi até as margens do Rio Pinheiros. O dono chamou-a de Chácara Tangará. O vizinho da frente era familiar: uma monumental construção projetada por Marcello Piacentini, o arquiteto queridinho do duce Benito Mussolini, com o propósito de abrigar uma Universidade Matarazzo com foco em artes e ofício.

As obras da universidade estavam paralisadas quando Baby instalou nas vizinhanças sua princesa de carne e osso – o que conferia uma atmosfera ainda mais lúgubre a toda a redondeza. O sedutor impenitente foi capaz de perceber o desconforto de Ira e encomendou a Oscar Niemeyer, que surfava na notoriedade que Brasília lhe dera, um casarão que faria a ex-Universidade Matarazzo, depois adquirida pelo governo estadual para ser o Palácio dos Bandeirantes, parecer uma choupana. Os jardins foram encomendados a Burle Marx. As obras demoraram mais que o casamento. Aquilo que a imprensa do coração descrevia como uma lua de mel de conto de fadas subitamente feneceu em 1964. Tocheiros de bronze, como os de um castelo das highlands escocesas, ainda guarnecem a entrada da propriedade, a qual, com a morte de Baby, em 1977, aos 61 anos, acabou retaliada pelos herdeiros. O palacete tardio concebido por Niemeyer é hoje um hotel estrelado – Palácio Tangará – e os jardins de Burle Marx adornam o parque público que ganhou o nome do paisagista.

Uma biografia recém-lançada, entre outras revelações, esmiúça o percurso do céu ao inferno do casal Ira-Baby. O jornalista inglês Nicholas Foulkes, uma espécie de plantonista do high society, conseguiu que a irrequieta princesa Von Fürstenberg, aos 79 anos, morando em Londres, lhe abrisse o cofre de memórias e o baú do coração. Até hoje Ira se ressente de, ao fim de apenas quatro anos, ter perdido o foco de sua juvenil ilusão. Ela confidenciou ao biógrafo que o casamento com Baby os consumiu em viagens pela Europa na tentativa de localizar os dois filhos, Christoph e Hubertus, que o príncipe Alfonso, marido traído e vingativo, escondia dela. Baby comprou a causa. Prometia a Ira: “Vamos ter essas crianças de volta. Vou recuperá-las para você”. As buscas infrutíferas desgastaram a relação. Um dia, Ira recebeu um telegrama do marido marcando um encontro em Paris. Em vez de Baby, esperava por ela um assessor do empresário. A punhalada cravou fundo: “Baby quer te deixar”.

O assessor de Baby a avisou em Paris: “Ele quer te deixar”. Ela, arrasada, decidiu nunca mais se casar

“Foi terrível”, contou Ira a Foulkes. “O pior momento de minha vida. Tinha perdido meus filhos e agora perdia o marido que eu adorava.” Tomou a decisão de nunca mais se casar. “Daí em diante, ia desfrutar la dolce vita: um monte de namorados, muita festa, nenhuma relação entediante.” De acordo com o que poderia esperar de uma princesa na flor da idade, instalou sua neossolteirice trepidante num flat da Place Vendôme, em Paris – vizinha do Hotel Ritz, de Aga Khan, de Elizabeth Arden e do barão Elie de Rotschild. Foi ali que, em 1967, Henry Clarke produziu sua icônica foto para a capa de Vogue.

Seu voto de celibato esteve por um fio quando, nos anos 1980, andou circulando na companhia do príncipe Rainier de Mônaco, já viúvo de Grace Kelly. Os tabloides apostaram num casamento de pompa e circunstância, mas os Grimaldi se convenceram de que era inoportuno empanar o glamour marqueteiro que a hollywoodiana Grace conferira ao Principado.

A uma princesa genuína, de berço e casamento, cabem tarefas especiais que Ira encarou alegremente. Trabalhou, por exemplo, como Public Relations para seu amigo estilista Valentino. Outras grifes de luxo logo a requisitariam: Céline, Chanel, Chloé, Cartier, Van Cleef & Arpels. Admirada pelo humor que beira a candura, também foi atraída pelo jornalismo. Foi titular da coluna Demeures Princières, que devassava, com discreta elegância, as residências de suas amigas de sangue azul.

Na pouco criteriosa tentativa de ser atriz, um filme com Klaus Kinski e uma chanchada no Pantanal

Sua beleza insistente abriu-lhe as portas do cinema, mas, embora Ira tenha se convencido de que poderia, sim, ser uma estrela, não foi muito criteriosa nas escolhas. Seu filme mais conhecido acabou sendo Vatican Story, de 1968, menos pelo enredo indigente (a tentativa de furto de tesouros do Vaticano por um professor deficiente visual) e mais por ter a seu lado o carismático Klaus Kinski.

Numa de suas vindas ao Brasil, país que ela nunca esqueceu por completo, entendeu, com dor no coração, que a recíproca não era verdadeira. Ira aceitou fazer Desejo Selvagem, filme dirigido e estrelado, em 1979, pelo canastrão David Cardoso, a caminho de virar o rei da pornochanchada. O nome da princesa Von Fürstenberg aparece com destaque nos créditos. Mas no cartaz do filme a protagonista é uma onça-pintada.

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