

Opinião
‘A Geração Ansiosa’ e a nova caverna de Platão
Vício da geração Z, internet e as redes sociais são catalisadores para uma infância cada vez mais ansiosa, solitária e fragilizada.


Onde brincam as crianças? [“Where do the children play?”] perguntava-se Cat Stevens, no rescaldo da contracultura, numa canção belíssima de crítica ao desenvolvimento técnico e ao crescimento econômico desenfreado. Entre muitas outras coisas, os versos de Stevens aludiam ao fuzuê urbano e à falta de espaço nas cidades. O tempo respondeu à pergunta de Stevens de maneira inusitada: elas brincam em seus celulares.
A respeito dessa espécie de anomia, a editora Companhia das Letras prestou ao Brasil um serviço de utilidade pública, traduzindo com rapidez o último livro de Jonathan Haidt, A Geração Ansiosa, lançado ainda há pouco nos Estados Unidos. A primeira edição já foi reimpressa mas a obra, até agora, criou um barulho baixo se considerarmos a brutal gravidade do assunto. Trata-se de expor “o colapso da saúde mental entre os jovens e as consequências drásticas de uma vida hiperconectada e sem supervisão no ambiente digital”. Enquanto o ego da moçada é sugado e triturado pela hélice pesada das redes, o público letrado do país dá mostras de ainda ignorar esse autor, e sua obra. A página de Haidt, no Instagram, é seguida por uma quantidade ínfima de brasileiras e brasileiros, o que é um assombro.
Essa baixa repercussão do livro talvez possa ser explicada, pela própria dinâmica informacional que enfrentamos, aqui e agora: vivemos uma substituição acelerada e diuturna de assuntos e escândalos, debatemos uma neo-estultice por semana enquanto a estrutura fundamental da economia digital permanece inalterada. Trump e Musk agradecem.
A página de Haidt, a propósito, tem 332 mil seguidores e é um desdobramento militante de suas pesquisas, muito conclusivas. Ele apresenta seu trabalho como sendo um conjunto de provas cabais do estrago, em síntese, esse: “O declínio da saúde mental [juvenil] é indicado por um aumento acentuado nos índices de ansiedade, depressão e automutilação, desde o começo da década de 2010”. Havendo chegado a um diagnóstico, Haidt passou para o ativismo político e jurídico direto, militando sem delongas, conduzindo sua prática à defesa de “4 Novas Normas” para o mundo digital. São elas, bastante simples:
- Crianças sem smartphones até o ensino médio
- Crianças sem redes sociais até os 16 anos
- Escolas sem telefone
- Recuperação do brincar, com mais independência no mundo real
Cada uma de tais ideias têm sua razão de ser, num programa de reação e virada. O maior dos problemas a serem enfrentados, depreende-se de sua leitura, é o amplo processo de descorporificação ocorrido com os seres humanos da “Geração Z” – nascidos de 1995 em diante – porque a economia digital atuou como “inibidora de experiências”, e não como catalisadora, conforme se esperava nos primórdios da utopia digital, no começo do milênio. Não se pode reduzir o problema aos mais jovens. Todos fomos vitimados. Eles, porém, foram mais.
Enquanto essa desgraça relacional e cognitiva se encena, assistimos ao circo daquilo que Haidt chama “os quatro prejuízos fundamentais” da infância contemporânea, a saber: privação de sono, privação social, fragmentação da atenção e vício (simples vício). Professores, vimos impávidos os nossos alunos meterem a fuça em telinhas, em plena treva do dia. O smarthpone é a nova caverna de Platão. Pedestres entontecidos, atravessamos o leito carroçável com nossas espinhas dorsais vergadas. Os almoços e encontros estão turvos de desatenção afetiva. Os restaurantes converteram-se em centros públicos de abdução, com espectros de comensais ausentes. Até nas pistas de dança o negócio é sacado do bolso. Não é fácil enfrentar a fera, alerta Haidt, nem se trata de uma condenação moral: é problema de saúde pública. A infância orientada para o digital é uma droga. É como se houvéssemos legalizado um coquetel corrosivo de psicotrópicos radicais, na dissociação absoluta do entorno.
Mas o alerta de Haidt não é só sobre os danos relacionais, colaterais. É também, e sobretudo, sobre os conteúdos em si, isto é, o duplo dano: ao mesmo tempo em que arranca as crianças do convívio carne-e-osso, as redes sociais as massacram por aquilo que veiculam, uma fábrica de choques e traumas cujo estrago é notável em estatísticas sólidas. Tudo isso conduz o autor a formular essa mensagem-mãe: o pior lugar onde uma criança pode ir, desacompanhada dos pais, é a internet. Com esse pano-de-fundo, Haidt coloca em questão, brilhantemente, as fobias anti-urbanas que há anos iludem a classe média dos prédios bege: tudo começou, sustenta o autor, quando uma geração preconceituosa e superprotetora acreditou defender seus filhos dos “perigos” da cidade, “trancando” as crianças em casa. Where do the children play? Pareceu-lhe mais seguro fazer isso, como se o game de sangue jorrado fosse melhor que a pracinha. Ou seja, na origem da corrosão se encontra – como sói – um classismo asqueroso. “A geração ansiosa” é um livro duro, mas também uma ode à brincadeira, ao contato e aos espaços livres públicos.
E Haidt, ao contrário de muitos analistas psicológicos de hoje, é atento à base material da vida, apontando os obstáculos à superação da mixórdia: os interesses das big techs. Tendo montado para si um mercado bárbaro de anúncios escrotos misturados a programações escrotas e lixo hipnótico escroto, os mestres do metaverso se recusam a deflacionar seus ganhos, por razões que vão dos simples contratos de publicidade (milionários, by the way) aos circuitos de valorização acionária e, obviamente, o tráfico de dados que tornou-se um asset violento. As big techs sabem até mesmo quem está prestes a cometer suicídio, afirma o autor. A “geração ansiosa” é, assim, a vítima mais fresca da predação capitalista ilimitada.
O mais interessante das proposições de Haidt é o fato de ser o sinal perfeito de uma nova era. A fase de oba-oba utópico acabou para os entusiastas da rede. Os níveis de participação política aumentaram, conforme a utopia projetada, mas depois se degradaram em manicomias cognitivas chocantes, infensas ao teste de realidade. A “mamadeira de piroca” talvez seja dessa era o nosso mais grotesco símbolo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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