Drauzio Varella

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Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

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A genética da dependência

Enquanto os EUA vivem uma epidemia de abuso de opioides, a ciência desvenda os genes envolvidos na compulsão pelas drogas

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“Depois de décadas, a expectativa de vida nos Estados Unidos vem caindo. É uma tendência chocante, provocada pelas chamadas mortes por desespero que envolvem overdoses, suicídios e doenças atribuíveis ao abuso de drogas e ao estresse.” Assim começa um artigo sobre a neurociência da dependência química, publicado na revista Science desta semana.

Os Estados Unidos vivem uma epidemia de abuso de opioides. Mais de 99% da hidroxicodona e a maior parte do ­fentanil (opioides potentes) produzidos no mundo são consumidos em território americano. No país que mais consome drogas, as vendas de álcool bem como o número de testes positivos para detectar a presença de maconha, cocaína e metanfetamina em pessoas no ambiente de trabalho nunca foram tão altos.

Nos últimos anos, a nova realidade levou o FDA – a agência responsável pela aprovação de alimentos e medicamentos – a aprovar a buprenorfina e a ­metadona para ajudar os dependentes de heroína e outros opioides a suportar as crises de abstinência. Para a urgência das overdoses que podem levar à morte, há anos é empregado o naloxone, droga de ação heroica quando administrada a tempo.

A situação é tão grave que, nos Estados Unidos, país em que as farmácias exigem prescrição médica até para vender Viagra, o naloxone é comercializado diretamente no balcão, sem qualquer exigência, em vários estados.

Esses medicamentos, no entanto, têm ação limitada no alívio das crises, e pouca ou nenhuma utilidade na prevenção das recaídas que perseguem o usuário pelo resto da vida. Da mesma forma, não dispomos de drogas específicas para reduzir o risco de recidivas entre os dependentes de maconha, cocaína, anfetaminas, álcool, fumo ou os ­benzodiazepínicos que muita gente “de respeito” toma todas as noites antes de ir para a cama.

O que explica o fato de que uma pessoa experimenta uma droga, sente o prazer que ela traz, mas depois se desinteressa dela ou se torna usuária ocasional, enquanto outra passa a fazer o uso compulsivo que a escraviza?

Os estudos mostram que há fatores genéticos envolvidos. O sequenciamento dos genes realizado em grandes números de usuários e de abstêmios, demonstram que algumas variantes de certos genes aumentam a ­probabilidade de desenvolver dependência. Em si, essas variantes não são patológicas, mas as proteínas produzidas por elas podem criar a estrutura molecular que dispara a compulsão, quando o usuário entra em contato com a droga.

É o caso do aumento da prevalência de uma variante do gene OPRM1 entre os usuários compulsivos de opioides. Esse gene codifica uma proteína que funciona como receptor nas membranas dos neurônios, ao qual os opioides se ligam. A ligação funciona como gatilho para o aparecimento dos efeitos euforizantes e analgésicos.

Da natureza molecular da interação entre o opioide e a proteína ao qual ele se liga vai depender a intensidade do prazer e a duração do efeito euforizante/analgésico. Como existem diversas variantes, a sensação que o opioide provocará não será igual em todos os que o experimentam.

Já foram identificados vários genes envolvidos na vulnerabilidade ao abuso de álcool, cocaína, maconha e fumo.

Muitos genes associados à adição estão concentrados em áreas do cérebro que regulam a sensação de euforia, bem como a de aversão. A genética, dessa forma, não está envolvida apenas na vulnerabilidade a determinada droga, mas à própria arquitetura dos circuitos formados pelos neurônios cerebrais. Como o uso abusivo remodela esses circuitos em diversas áreas do cérebro, a dependência química é considerada um transtorno da plasticidade neuronal.

Para terminar. Em diversos tecidos, existem receptores aos quais a droga se liga: coração, mucosa oral e nasal, pulmões. Portanto, a interação acontece antes dela chegar ao cérebro, mecanismo que exerce grande influência sobre o comportamento do usuário.

A droga adição é, dentro de toda a medicina, um dos transtornos menos conhecidos e mais difíceis de tratar. A ignorância, o preconceito e o estigma social contra os usuários só agravam a dificuldade.

Depois dos mecanismos resumidos na coluna de hoje, caro leitor, veja como fica ridículo considerar a dependência química uma questão moral e o dependente uma pessoa fraca, sem força de vontade. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A genética da dependência’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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