

Opinião
A força de uma rede que não se cala
O legado da Rede Liberdade é lembrar ao Brasil que cada direito violado é também uma convocação à luta


Há momentos em que a história de um país se mede pela coragem de quem não se cala. O Brasil vive um desses momentos. Em cada esquina, a violência se repete: vidas negras ceifadas, territórios ameaçados, liberdades comprimidas por estruturas estatais que deveriam garanti-las. A cada estatística que transforma corpos em números, a democracia se esgarça. É nesse cenário que a Rede Liberdade assume sua vocação: ser trincheira, ser voz e ser ação.
Nascida das ideias de quem viu de perto o horror das marcas da ditadura, a Rede Liberdade esteve presente em alguns dos casos mais emblemáticos da luta por direitos humanos no Brasil. Casos que não apenas denunciam violações, mas também revelam como a mobilização coletiva pode transformar o silêncio institucional em respostas concretas, e a indiferença em ação.
Mais do que um espaço de acolhimento, a Rede é uma aliança viva, pulsante, feita de organizações, coletivos e pessoas que sabem que a democracia não se sustenta apenas no voto, mas na proteção cotidiana de direitos. Nascida da urgência de responder a retrocessos, ela transformou indignação em incidência estratégica e dor em litígio paradigmático.
Mais recentemente, a Rede Liberdade tem questionado o avanço descontrolado de tecnologias de vigilância, como o reconhecimento facial em São Paulo. O que a Prefeitura vende como inovação em segurança pública, na prática, é um sistema opaco, caro e perigoso, que ameaça sobretudo pessoas negras e periféricas, já historicamente criminalizadas. Pedimos transparência, acesso a dados e auditorias independentes. Até agora, recebemos respostas evasivas. Nossa luta, aqui, é para que o futuro digital não repita os vícios do passado: a exclusão, a violência seletiva e a falta de responsabilização.
A Rede Liberdade prova que resistência não se faz apenas com indignação, mas com técnica, com estratégia e com articulação. Ela transforma redes de dor em redes de luta. E lembra ao país que, enquanto houver mães que não se calam, jovens que se organizam e coletivos que se recusam a desistir, haverá também caminhos de justiça a serem abertos.
O legado da Rede é claro: cada violação de direito é também um chamado à ação. Defender a democracia significa enfrentar a violência estatal, a criminalização de corpos e a desigualdade estrutural que insiste em atravancar o futuro do Brasil. Nesse sentido, a Rede Liberdade não é apenas um projeto — é um ato de fé coletiva.
Num tempo em que a erosão democrática se normaliza, a Rede Liberdade insiste em lembrar: sozinhos somos alvos fáceis, mas juntos somos resistência.
E quando o próprio Estado se volta contra a sociedade civil, também é a Rede que está lá. Foi assim no caso da Abin Paralela, esquema de espionagem ilegal durante o governo Bolsonaro. Organizações sociais, ativistas e jornalistas foram monitorados, perseguidos e atacados. Atuamos para proteger juridicamente e digitalmente aqueles que tiveram sua liberdade violada. Porque a democracia não se sustenta com medo nem com silêncio.
Outro caso emblemático acompanha a atuação da Rede Liberdade na proteção de defensores de direitos humanos vinculados ao Programa de Reforma Agrária Araipacupu. Ao longo de mais de uma década, esses defensores enfrentam ameaças constantes que colocam em risco sua vida e integridade física. A Rede Liberdade atuou por meio de medidas jurídicas e institucionais, incluindo a inserção no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), abertura de procedimentos no Ministério Público Federal para investigação das ameaças e acompanhamento judicial em processos nos quais os defensores figuram como vítimas. Essa atuação reforça o compromisso da Rede com a proteção de quem se coloca na linha de frente da defesa da justiça social, muitas vezes diante de riscos que o Estado sozinho não consegue mitigar.
Esses são apenas alguns exemplos de um trabalho que é maior do que cada caso individual. A Rede Liberdade é feita por advogados, organizações e defensores que acreditam que nenhuma violação deve ser normalizada. Que cada vida perdida, cada dado vigiado, cada direito negado é uma ferida que precisa ser exposta e que só a mobilização coletiva pode cicatrizar.
Mas nada disso seria possível sem as mulheres que sustentam a Rede Liberdade com sua inteligência e estratégia. São advogadas, técnicas e lideranças que transformam complexidade em ação, que desenham caminhos jurídicos e de incidência com a precisão de quem sabe onde quer chegar. A Rede tem rosto de mulheres que não se resignam, que manejam as ferramentas do direito como espada e escudo, que articulam bases e produzem incidências com altivez. Não é apenas resistência — é direção, é comando, é construção de futuro. A verdadeira força da Rede Liberdade está nelas: mulheres que, com lucidez e rigor, mantêm acesa a chama da democracia e do direito de existir.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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