CartaCapital
A falácia do pedido de perdão quando se amarga prejuízo financeiro
Recente exposição de uma criança por MC Gui e posterior pedido de desculpas por cancelamento de shows mostram comportamentos comuns


Recentemente vimos a notícia de que um artista chamado MC GUI expôs uma criança a uma situação vexatória na internet, transformando a menor em memes que foram compartilhados sem fim em várias redes sociais. Não é meu propósito aqui discutir como esta exposição é nociva, pois é óbvio – a questão aqui é outra: os pedidos de perdão que as pessoas fazem após a exposição negativa do ato praticado.
Durante as eleições para presidente, que acabou com a eleição do Bolsonaro, aqui no município que eu resido, em Conceição do Coité, na Bahia, um médico obstetra, que trabalha diariamente com mulheres, publicou uma imagem extremamente ofensiva onde ensinava mulheres “a introduzir a opinião contrária ao Bolsonaro na vagina”. Expomos o médico e, diante da repercussão negativa e de várias mulheres boicotando o consultório, o referido médico foi às redes sociais pedir desculpas e dizer que “ofender não foi a intenção”.
O mesmo agora acontece com o MC GUI: “não foi a minha intenção ofender ninguém”.
É interessante porque a intenção de não ofender só ocorre depois que ofende. A não intenção de machucar só surge depois que machucou. E o mais interessante é que os pedidos de desculpas só surgem depois que começam os prejuízos financeiros.
O fato é que o perdão é uma nobre atitude e que deve ser sempre incentivada. Como diz o texto bíblico: “devemos perdoar não sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mateus 18:22). Todavia, há que se questionar qual a fonte do pedido de perdão, pois, já dizia o apóstolo: “não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus” (1 João 4:1).
O pedido de perdão hoje, em uma época onde a resistência contra as ofensas é chamada de “vitimismo” e “mimimi”, se transformou em instrumento a serviço de equipe de marketing na atuação contra danos à imagem. Enquanto se pede perdão, minimizam-se as perdas financeiras e desloca o debate para outro campo – geralmente tornando o ofensor em vítima.
Estes pedidos de perdão, oriundos do desespero por perdas financeiras – cancelamento de shows, diminuição de clientes e etc. – são perigosos porque despolitizam as ofensas.
Ora: “se eu constrangi uma criança, mas fiz isso sem intenção de machucar e pedi desculpas, para que mais discutir a questão política da ofensa?”. E aqui reside todo o problema, porque acham que o pedido de perdão, seguido da aceitação do pedido, automaticamente retira o que motivou o pedido da pauta de debates. Então o pedido de desculpa não faz o sujeito entrar em confronto com seus atos, mas empurra este para o esquecimento. Aqui, portanto, reside toda a falácia do pedido de perdão: não é pedagógico, é isenção de responsabilidade.
Karl Marx chegou a escrever que “a burguesia rasgou o véu de emoção e de sentimentalidade […] e reduziu-as a mera relação monetária”. O mesmo pode ser dito dos pedidos de perdão: deixou de ser algo motivado pelo sentimento de auto-aversão para se transformar numa válvula que estanca prejuízos financeiros.
É lógico que todos erram e que todos têm direito ao perdão. Entretanto, quando o perdão é motivado por outra razão diferente da consciência de que fez algo que merece a repulsa, o pedido de perdão apenas demonstra a pequenez do indivíduo – a emenda fica pior que o soneto.
O lado mais sujo da imoralidade é quando o pedido de perdão camufla a sordidez do caráter. Havemos de perdoar, mas nenhum de nós “passará pano” para os pedidos cuja fonte é poluída. Aliás, pedidos de perdão desse tipo surgem da mesma fonte de onde nasceu a ideia de ofender as pessoas. Não passarão!
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