Pedro Paulo Zahluth Bastos

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Professor da Unicamp. Foi professor visitante na UC Berkeley (EUA).

Opinião

A fábula do especialista em Previdência Social que não sabe fazer conta

A ‘economia’ com a reforma vem é do aumento do desconto do valor do benefício para aposentadorias com pouco tempo de contribuição

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Com colaboração de David Deccache

Era uma vez um especialista em Previdência Social que gostava de contar fábulas para os senadores que assessorava. Ele se chamava Pedro Nery.

Ele não era bom com os números, mas era um excelente sofista. Conseguiu convencer um senador do Ceará a votar contra o interesse de seu estado, ou melhor, dos aposentados pobres de seu estado.

Lá no Ceará, como em outros estados que ainda se desenvolvem, a Previdência é muito importante para proteger os idosos da pobreza e animar a economia. Em 2017, dos 184 municípios, 173 recebiam mais recursos na forma de benefícios da Previdência do que do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que redistribui recursos na União.

E só oito municípios cearenses geravam mais contribuições para a Previdência do que recebiam benefícios. Outros 176 recebiam grande impulso econômico a cada mês em que os aposentados pagavam contas da família com benefícios da Previdência.

Assim, o Ceará recebeu quase 16 bilhões da Previdência, mas arrecadou apenas 8,66 bilhões, quase a metade. Do FPM, as cidades do Ceará receberam só 3,86 bilhões, quatro vezes menos do que o valor recebido em benefícios previdenciários.

Como em outros estados pobres, o Ceará tem muitos trabalhadores pobres que se aposentam por idade com pouca capacidade contributiva, mal passando de 15 anos de contribuição. É claro que, permanecendo pequena a capacidade contributiva dos trabalhadores ativos, o Ceará continuará recebedor líquido de recursos da Previdência. E tanto mais quanto mais a aposentadoria por idade repor o salário anterior. Isto é, quanto menor o desconto do salário para a aposentadoria (maior a “taxa de reposição”), melhor para o Ceará.

Pensando nestes trabalhadores pobres do Ceará, vamos acompanhar a última fábula do especialista em Previdência Social, a história de um engenheiro paulistano que se aposentou com 56 anos (com as regras de hoje) e de Jorge, um pintor cearense que só poderá se aposentar com 68 anos.

Para o fabulista Pedro Nery, isto é injusto. Logo, apoiemos a Reforma da Previdência de Bolsonaro!

O problema é que, se Nery fizesse as contas, perceberia que a reforma amplia a desigualdade e prejudica o coitado do Jorge. Vamos contar o resto da história.

Jorge começou a trabalhar aos 18 anos de idade como ajudante de pedreiro. Em poucos momentos da vida, conseguiu trabalhar com carteira assinada e hoje, com 68 anos, após meio século de trabalho, conseguiu somar, finalmente, os 15 anos de contribuição.

Além disso, durante três anos ele contribuiu sobre um salário mínimo e nos outros 12 anos com base em dois salários mínimos. Se Jorge se aposentasse com as regras de hoje, receberia como benefício 1.700 reais (85% da média das 80% maiores contribuições).

Contudo, caso a totalidade das regras finais da reforma da Previdência (PEC 06/2019) estivesse valendo hoje, o coitado do Jorge teria um benefício de apenas 1.080 reais.

Coitado do Jorge, a proposta que o enganador de cearenses defende tiraria dele 620 reais por mês, 8.060 reais por ano e cerca de 130 mil reais durante todo o seu tempo de vida pós aposentadoria. Isso porque a reforma da Previdência aumenta o desconto do salário para a aposentadoria de 15% para 40% com 15 anos de contribuição, e de 10% para 40% com 20 anos de contribuição. Não vai fazer bem para a economia do Ceará.

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Mas e Henrique, o engenheiro que se aposentaria com 56 anos com as regras de hoje? É o próprio fabulista que nos conta: “para os que ganham mais e se aposentam por tempo de contribuição, os 40 anos (de exigência para obter o benefício integral) não significam grande mudança em relação ao fator previdenciário.” É uma passagem de um artigo em que o fabulista chamou Thomas Piketty de “contador” e não economista…

Ou seja, é o próprio fabulista que nos diz que é o Henrique, o engenheiro paulistano, quem perde menos com a Reforma da Previdência. Se quiser complementar a aposentadoria, ele provavelmente vai buscar um fundo de previdência privada com sede na Avenida Faria Lima, que empregará mais consultores ricos especialistas em Previdência. Não em Fortaleza.

O que o fabulista esquece de dizer aos senadores é que a “economia” gerada pela reforma não vem do fim da aposentadoria por tempo de contribuição com desconto do Fator Previdenciário (FP) em si. A conta é fácil. Quem se aposenta aos 65 anos tem 18,7 anos de sobrevida. Já quem se aposenta hoje aos 55 anos, tem 26,4 anos de sobrevida, mas tem o benefício multiplicado por um FP igual a 0,682. Custa apenas 18 anos (26,4 x 0,682) e não 18,7. Ora, o FP existe justamente para punir a aposentadoria em idade mais nova.

No regime geral para o setor privado, a “economia” com a reforma vem é do aumento do desconto do valor do benefício para aposentadorias com pouco tempo de contribuição, ou seja, vem da tunga no pintor cearense.

Isto é, ao contrário das fábulas contadas aos senadores, a reforma não traz só “simplificação” ao unir as exigências de tempo de contribuição e idade mínima. Ela ferra com um desconto enorme a aposentadoria do pintor cearense que se aposenta com pouco tempo de contribuição.

Tudo bem, vamos contar só mais uma fábula. O consultor altruísta já quis defender a reforma perversa afirmando que “a empregada doméstica, o pedreiro ou o gari se aposentam 10 anos depois do patrão: possuem idade mínima de 65 anos, enquanto a média da aposentadoria por tempo de contribuição é de 55”. Quanta lágrima de crocodilo.

A primeira enganação: a empregada pode se aposentar hoje com 60 anos (e não 65) e 15 anos de contribuição. Nosso fabulista defendia que ela se aposentasse com 20 anos de contribuição, mas a contragosto seu grupo só conseguiu aumentar a idade mínima para 62 anos e tacar-lhe o desconto de 40% no benefício. Há outras enganações.

Segunda perversidade: hoje o gari pode obter aposentadoria especial a partir da comprovação da exposição a agentes nocivos biológicos, de forma habitual e permanente, por 25 anos, sem requisito de idade mínima. A reforma exige idade mínima para a aposentadoria especial, de modo que o gari só poderá se aposentar com 60 anos, mesmo que já tenha perdido o emprego muito tempo antes por não ser capaz de correr atrás dos caminhões de lixo. E há outras perversidades.

Pelo jeito, o fabulista Pedro Nery é bom de lábia, mas é muito ruim de conta. Pobres dos eleitores dos senadores que ainda o ouvem.

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