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A exploração e abuso sexual de crianças e jovens na ilha do Marajó/PA

Damares Alves afirmou que crianças e adolescentes da Ilha do Marajó, no Pará, eram exploradas porque não tinham calcinha e eram muito pobres

Ilha do Marajó. Foto: Marcelo Lelis/Ag. Pará
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Antes de tudo, como mulher negra Amazônida, enfermeira, Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e hoje vereadora do município de Belém, não poderia deixar de abordar nesse primeiro contato, um fenômeno que observei de perto, que para nós Amazônidas, é muito claro e ocorre há anos: a exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes ribeirinhas no maior arquipélago do planeta, a ilha do Marajó, onde trabalhei como enfermeira, servidora da Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Pará, mais precisamente nos Municípios de Breves (1986 – 1987) e Portel no período de 1988 a 1991.

Vale acrescentar, que muito me orgulho de ter trabalhado na ilha do Marajó, a qual apresenta uma natureza mítica, exuberante, cheia de riquezas naturais, de histórias, lendas Amazônicas.

Sobre a Ilha de Marajó

Além de seu povo honesto, acolhedor, simples, trabalhador, humilde e rico em cultura, O arquipélago encontra-se abandonado pelo poder público que ainda não enxergou o potencial turístico, cultural e socioeconômico. Destaco o Município de Breves, cujo fenômeno é muito mais evidente, por ser o município mais populoso do arquipélago, totalizando em torno de 100 mil habitantes.

Vista aérea de Marajó. Foto: Sidney Oliveira/Ag. Pará

Apesar das riquezas naturais e seu povo hospitaleiro, a cidade de Breves, assim como as demais cidades da ilha do Marajó, passa por inúmeros problemas socioeconômicos, entre os quais podemos apontar: saneamento básico precário, tratamento de água ineficaz, que em consequência provocam alta prevalência de doenças gastrointestinais e de pele.

O mesmo se dá com os serviços públicos que, no geral, são precários, dificultando o acesso da população ribeirinha a políticas públicas.

O povo de Breves, sobrevive do extrativismo como venda do açaí, palmito, carvão e da agricultura e pecuária nos locais mais afastados da área urbana. Não há industrias ou fábricas. O fortalecimento das leis ambientais, retirou a madeira como fonte principal de renda, por outro lado, não há investimento em práticas de agricultura, piscicultura e turismo. O dinheiro circulante, em geral, é oriundo dos salários da prefeitura e dos benefícios do governo federal como bolsa família, aposentadorias e pensões os quais movimentam o comércio local.

Assim, embora o Marajó seja rico em recursos hídricos e biológicos, alguns de seus municípios apresentam os menores índices de desenvolvimento (IDH) do país. Note-se as extensas áreas de vazio urbano e a baixa densidade demográfica nessa região e suas implicações na constituição dos espaços, da distribuição e acesso às políticas públicas, considerando-se ainda a forma como a Amazônia brasileira foi inserida no processo de produção capitalista.

Eis o cenário em que muitas meninas mulheres do Marajó vivem. Exploradas sexualmente, em troca de óleo diesel, comida e dinheiro.

A exploração sexual infantil na região

Em torno dos navios e barcos que fazem transporte, é comum a canoas com crianças aproximarem-se destes e os passageiros lançarem víveres, roupas e brinquedos. No entanto, em momentos furtivos, de forma não explícita, crianças e adolescentes entram nas embarcações.

Moraes (2009) explica que as meninas vão em suas canoas para dentro das embarcações, navios e barcos que atracam no porto do município e da região para serem exploradas por comerciantes e donos de embarcações, à essas meninas-mulheres  chamam pejorativamente de “balseiras”.

As embarcações a que se refere são as balsas, espécie de navio para cargas. A exploração e abuso sexual juvenil que ocorrem nas balsas (espécie de transporte fluvial do Marajó) nas águas da Amazônia Marajoara, fazem parte da triste realidade da região, já conhecida e anunciada pelos veículos de comunicação local com um tom, muitas vezes de tragédia.

O abuso e a exploração sexual infantil nas águas marajoaras somam com a busca pela sobrevivência destas jovens e de sua família, cujo foco não é apenas a busca por dinheiro, mas também por comida, roupas e outros objetos de valor. Tal problema se reflete também no contexto escolar e a esse respeito Vieira (2011), postula que o reflexo pode ser percebido no déficit do aprendizado, desatenção nas atividades escolares, desinteresse pela escolarização, reprovação, repetência, evasão escolar e fragilidade na formação e no desenvolvimento psicossocial Infanto-juvenil.

Não podemos aceitar qualquer tipo de exploração e o poder público se mantém em silêncio ignorando esse fenômeno através da ausência de políticas públicas, ou quando se manifesta é algo lastimável, como vimos em recente visita da uma representante do governo federal.

Damares Alves e a “fábrica de calcinha”

Em julho de 2019, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro, Damares Alves, visitou a ilha para lançamento do programa “Abrace o Marajó, criado pelo governo federal para supostamente combater o grave problema da região. Na oportunidade, a ministra afirmou que teria sido informada que as meninas eram exploradas por não terem calcinhas e serem muito pobres. Afirmou que iria construir, então, uma fábrica de calcinhas, sua “solução” para o problema.

Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Ora, parece óbvio dizer isso, Ministra, mas não é a falta de fábrica calcinhas que causa ou combate a violência sexual. Da mesma forma, as meninas não são exploradas por não usarem calcinha. São exploradas sim, mas pela ausência em políticas públicas essenciais de geração de emprego e renda, de combate à exploração sexual infanto- juvenil, de educação pública de qualidade e de investimentos que gerem trabalho. Nessas condições, essas meninas encontram-se inseridas neste contexto de maneira silenciosa, em que enquanto muitas são impedidas de denunciar, outras nem se percebem vítimas de violência.

A ilha do Marajó precisa de muito mais que uma fábrica de calcinhas. Precisa de gente que trate o povo com respeito, que conheça a região e que tenha um olhar de política pública para uma situação que é dramática.

A urgência é para que a Ministra e o chefe do poder público realizem o seu trabalho garantindo direitos fundamentais ao povo do arquipélago e, principalmente a essas meninas, que estão à mercê de ter suas vidas violentadas e sua juventude ameaçada. Mas, a julgar pelo nível das declarações sobre o tema, sabemos o quão longe estão de fazerem seu trabalho.


REFERÊNCIAS

VIEIRA, ANDRÉA SILVA. Representações sociais de jovens-alunos de uma escola ribeirinha sobre exploração sexual infantil nas balsas do Marajó e as implicações nas suas escolarizações. Orientadora, Ivany Pinto Nascimento. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Programa de Pós-graduação em Educação, Belém, 2011.

TUPIASSU, Amarílis. Amazônia, das travessias lusitanas à literatura de até agora. Estud. Av. [online]. Vol.19, n.53, pp. 299-320. INSS 0103-4014, 2005.

MORAES, M. L. Uma comunidade ribeirinha: etnografia e cotidiano, marretagem e outras histórias na Amazônia Marajoara, Dissertação – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

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