

Opinião
A exceção que é regra
O bolsonarismo nos defrontou com o apodrecimento das Forças Armadas e da segurança nas diferentes instâncias do País


À medida que se acumulam contra as Forças Armadas e de segurança brasileiras as denúncias flagrantes de truculência, abusos de autoridade, uso indevido da força, corrupção, envolvimento com o crime organizado e toda sorte de improbidade, percebemos estar diante não de um caso de exceção, mas de regra.
A abordagem da exceção como regra, em especial nos casos de determinação de Estado de Exceção, ganhou destacada notoriedade por meio dos trabalhos do crítico cultural e ensaista alemão Walter Benjamin, que já a elaborava em meados da década de 1920. Foi, no entanto, no fim dos anos 1930 e no início dos anos 1940, que a formulação ganhou distinção na obra do intelectual. Em suas teses sobre o conceito da história, Benjamin reforça que a tradição dos oprimidos ensina que, para preservar seus interesses, as classes dirigentes e/ou dominantes lançam mão do que for necessário.
Quase um século depois, as elaborações do filósofo que viu seu país engolfado pelo nazifascismo ainda nos servem para pensar nossa realidade. A experiência do bolsonarismo nos defrontou com o apodrecimento das Forças Armadas nas suas mais diversas instâncias. Dos quadros ativos àqueles na reserva ou aposentados; dos escalões de quatro estrelas às patentes mais baixas, parecem ser padrão as posturas criminosas e a tranquilidade diante delas – como se estivessem certos da impunidade.
O mês de agosto foi derradeiro em desnudar as falcatruas em que se envolveram os membros das Forças Armadas próximos a Bolsonaro. O caso das joias apropriadas indevidamente pelo ex-presidente segue revelando novas camadas de absurdo. Um almirante (Bento Albuquerque) trouxe ao Brasil, em um avião da FAB, uma dessas joias que, posteriormente, seria negociada por um general (Mauro Cesar Lourena Cid). Em reportagem para a Globo News, o jornalista Otávio Guedes chegou a ironizar: “A maior operação militar desde a Guerra da Cisplatina!”
Um retrospecto dos anos de desgoverno Bolsonaro aponta uma série de escândalos que deveria ficar gravada na memória do País. A começar pelo sargento que pilotava um avião da FAB e, em missão acompanhando Bolsonaro, foi autuado, na Espanha, com 37 quilos de cocaína.
Podemos ainda listar os mais de 79 mil militares que receberam de forma irregular auxílio emergencial durante a pandemia, enquanto a classe trabalhadora perdia postos de trabalho e era defrontada com a morte. Somam-se aos absurdos as cifras vultosas gastas pela União com itens e valores suspeitos na alimentação dos militares.
Em 2021, segundo a revista IstoÉ, 1,8 bilhão de reais foi gasto em itens como leite condensado, chicletes, pizza e refrigerantes. Há ainda escândalos de verbas gastas em próteses penianas e remédios para impotência, isso sem mencionar a revelação, pelo UOL, de gastos de 3,8 bilhões de reais, em 2022, em aposentadorias de generais e pagamento integral a seus herdeiros.
Vale, no entanto, ressaltar que o descontrole dos militares não é um fenômeno presente apenas nas unidades federativas administradas por bolsonaristas ou dirigentes simpáticos a esse ethos político. O estado da Bahia talvez seja o exemplo mais flagrante disso.
Há 16 anos à frente do governo, as gestões petistas, que esperaríamos representar um projeto de democracia popular, têm apresentado o segundo maior índice em letalidade policial do País, com 10,4 assassinatos para cada 100 mil habitantes – segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O governo da frente ampla tem atuação ambígua no que diz respeito à regulação de uma categoria que figura como ameaça à democracia brasileira. Embora o número de militares em cargos civis tenha sido reduzido desde seu auge, no bolsonarismo – quando chegou a 6 mil cargos –, restam mais de mil militares em posições que deveriam pertencer a civis na administração pública no Brasil.
O orçamento de 2023 reserva, para os militares, mais de 125 bilhões de reais, e o novo PAC concede outros 53 bilhões de reais a eles – valor maior do que aquele destinado à saúde ou à educação, e que, efetivamente, amplia os poderes de uma organização que deveria prestar contas por condutas injustificáveis em vez de ser premiada com investimentos. Resta alguma esperança diante da PEC que o governo finalizou, propondo proibir que militares assumam cargos políticos. •
Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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