

Opinião
A Europa, de novo, se dobra ao arbítrio
Mais uma vez, vemos um ditador desafiar a legalidade internacional, com a conivência europeia, como ocorrera há um século


“Mas boa parte da nossa vida pode ser explicada de forma simples; herdamos as cicatrizes de nossos pais, muito mais do que imaginamos”
Chimamanda Ngozi Adichie
Que felicidade! As eleições na Província de Buenos Aires foram vencidas pelo peronismo. A extrema-direita recua na Argentina, país vizinho e irmão.
Teremos de nos libertar por nós mesmos, nós, latino-americanos, uma vez que a Europa Ocidental, há muito, passou para o outro lado.
Exemplo: a TV pública francesa France 24 Heures, totalmente sob censura e empenhada na propaganda colonial, noticiou que Milei fora atingido por “projéteis” em carreata quando, na verdade, já se sabia que eram pedras e garrafas.
Pior: qualificou Maduro de traficante, tentando justificar a agressão de Trump contra embarcação venezuelana, que matou 11 pessoas sem qualquer prova de tráfico e aplicando pena de morte sem julgamento, em total violação ao direito internacional.
Mais uma vez, vemos um ditador desafiar a legalidade internacional, com a conivência europeia, como ocorrera há um século.
Os meios de informação europeus, por sua vez, estão exclusivamente a serviço do neocolonialismo do Norte, cujos governos de direita enxergam no colonialismo a única forma de retomar o próprio enriquecimento — sem redistribuir renda.
O cenário impressiona pela semelhança com a ascensão de Hitler e Mussolini, apenas com sinais trocados: as vítimas de então, EUA e judeus, assumem hoje o papel de algozes nas figuras de Trump e Netanyahu.
A Europa Ocidental, mais uma vez, se dobra ao arbítrio. Não há como esperar dela resultado diferente do desastre de um século atrás.
Nos EUA e em Israel, é verdade, as sociedades civis são fortes. Mas também não eram na Alemanha e na Itália?
Pier Giorgio Frassati, militante antifascista, acaba de ser canonizado, lembrando o quanto havia cristãos engajados naquela luta.
Hoje, porém, os EUA são governados por criminosos de guerra: Trump, presidente; Vance, vice-presidente; e Rubio, chanceler. Todos responsáveis pelo genocídio em Gaza e pelo ataque ao barco venezuelano.
O ex-presidente das Filipinas, Duterte, não foi detido pelo Tribunal Penal Internacional por cometer o mesmo crime de executar supostos traficantes sem provas ou julgamento?
A propósito, Trump — o presidente ditador — renomeou o Departamento de Defesa para “Departamento da Guerra”.
Como no golpe de 2016 no Brasil, o problema não parece ser apenas os genocidas, mas sobretudo a reação das massas.
Por isso, eleições como as da Argentina são tão importantes. Assim como o julgamento dos golpistas do 8 de Janeiro no Brasil.
Convém notar que os fracassos da diplomacia de Trump na Ucrânia, em Gaza e no Irã só aumentam sua sanha contra a Venezuela: busca não apenas um êxito internacional, mas também o controle das maiores reservas de petróleo do mundo, a poucos quilômetros dos EUA.
O vínculo entre colonialismo e golpes de Estado no Sul se evidencia no caso da Volkswagen, condenada pela Justiça brasileira a pagar 165 milhões de reais a trabalhadores que mantinha em regime análogo à escravidão em seu latifúndio no Pará, durante a ditadura militar. Guardas armados vigiavam os empregados para impedir fugas.
Isso, apenas vinte anos após a queda do nazismo. Ou seja, como dissera Frantz Fanon, nazismo e fascismo escandalizaram apenas porque aconteceram na Europa — práticas coloniais seculares quando dirigidas a povos de outros continentes.
Não é isso que EUA e União Europeia dizem hoje ao Congo? “Se quiserem o fim da invasão, entreguem-nos suas riquezas minerais: terras raras, ouro, diamantes.”
Essa dominação só se sustenta com prepostos nacionais. Não é o caso dos desgovernadores Tarcísio e Zema?
Tarcísio não defende a ditadura ao apoiar quem conspirou contra a democracia? Não disse que, se eleito presidente, entregaria a Petrobras e o Banco do Brasil? Não recebeu doações de campanha de pessoas ligadas ao PCC? Muitos postos da BR Distribuidora, privatizados por Bolsonaro, não terminaram nas mãos do crime, para lavagem de dinheiro?
As ligações entre colonialismo, guerra e crime são evidentes.
Não basta o teatro ridículo dos “patriotas” que erguem a bandeira dos EUA no Dia da Independência brasileira. Nem o dos “cristãos” que se dizem pró-vida, mas apoiam o encarceramento de menores, o armamentismo — e silenciam sobre os abusos policiais, que vitimam primeiro os próprios agentes e, de forma seletiva, jovens negros periféricos.
Por que Trump não quer a justa condenação de Bolsonaro? Porque é seu vassalo: fatiou a principal empresa brasileira em benefício dos EUA, reduziu o refino de petróleo no país e aumentou a importação, pagando ágio.
A Petrobras, antes, era capaz de prover 65% dos fertilizantes necessários à agricultura brasileira. Hoje, importamos 85%.
Por isso, o governo Lula reativou a fábrica de fertilizantes da empresa, no Paraná, fechada pelo genocida.
Mas o mal não vence o bem: apesar das tarifas impostas por Trump para proteger Bolsonaro e seus cúmplices, o Brasil registrou superávit de 6,1 bilhões de dólares na balança comercial de agosto. A China aumentou suas compras em 30%, o México tornou-se o maior importador de carne brasileira e até a virtualmente falida Argentina voltou a comprar.
Com efeito, o mal só destrói a si próprio. Questão de tempo, e de luta.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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