Opinião

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A Europa abdicou da paz, da diplomacia e, por conseguinte, da própria soberania

Não causa estranheza, mas tristeza e comiseração, que o Ocidente tenha tanta dificuldade com o tema da cultura e da paz

Foto: JOHN THYS / AFP
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“Há qualquer coisa de errado com a criação deste mundo, porque os ricos se pensam benfeitores dos pobres, quando na verdade os ricos são alimentados e vestidos pelo trabalho destes pobres, e vivem no luxo que é por eles criado.”
Leon Tolstói.

A citação do autor de “Guerra e Paz” não poderia ser mais atual.

Ouve-se falar muito em russofobia, por parte dos ricos atuais (o Ocidente e seus hegemonizados).

Mas quem, de fato, perde, ao desconhecer a cultura russa? Conhecê-la quer dizer concordar com todas as atitudes de todos os russos e russas?

Freud, o criador da psicanálise, teria podido elaborar o conjunto de seus conhecimentos sem Fiódor Dostoiévski e suas “Memórias do Subsolo”?

O próprio Freud admite a enorme influência da obra de Dostoiévski sobre a teoria psicanalítica.

Na Itália, aquela obra do escritor russo é leitura obrigatória para os médicos que desejam seguir a especialização em psiquiatria.

No campo coletivo, também encontraremos a enorme influência da cultura russa sobre a filosofia e a política ocidentais.

O mais importante filósofo do século passado, Ludwig Wittgenstein, era conhecido no front da Primeira Guerra, em que servira como voluntário, como “homem dos evangelhos”, por ter-se tornado leitor assíduo e inseparável da obra de Tolstói sobre as escrituras sagradas.

O maior filósofo político do século XX, Antonio Gramsci, não teria podido desenvolver sua obra majestosa sem a ocorrência da Revolução de 17, do qual o Partido Comunista Italiano, que fundara, também resultou da irradiação poderosa daquelas ideias.

A mesma força centrípeta levará a maior revolucionária daquele século, Rosa Luxemburgo, a voltar seus olhos, letras e ações para a Rússia, potência que então ocupava seu país, a Polônia. Em intensa correspondência epistolar com o próprio Lenin, líder da Revolução Russa, Rosa, plena de sensibilidade e intuição feminina, buscaria abrir-lhe os olhos para os riscos de uma interpretação autoritária das ideias revolucionárias, o que, infelizmente, ocorreria, sob Josef Stalin.

Entretanto, não causa estranheza, mas tristeza e comiseração, que o Ocidente tenha tanta dificuldade com o tema da cultura e da paz.

Se olharmos para a riquíssima Europa, iremos nos surpreender com sua abdicação da paz, da diplomacia e, por conseguinte, da própria soberania.

Com efeito, nos foros multilaterais praticamente apenas a União Europeia se pronuncia, com uma posição que é a média ponderada das posições da Alemanha (majoritária) e da França (minoritária).

Na prática, apenas essas duas diplomacias sobreviveram.

No entanto, ainda assim estão desligadas dos anseios de seus nacionais, tendo sido raptadas (sim, no caso o termo é correto, pois a conotação sexual está simbolicamente presente naquelas transações), tornando-se presas de interesses escusos do grande capital, das petroleiras, das mineradoras e de toda sorte de espoliação humana e ambiental do Sul do mundo, sob o eufemismo das “privatizações”.

Para se ter uma ideia do nível de abdicação europeia, quem promoveu a paz em Moçambique, na década de 90 do século passado, não foi a ex-metrópole, Portugal, mas uma comunidade religiosa italiana, de Santo Egídio, sem sequer a participação do governo italiano.

Ora, quando uma atividade típica de estado, como a diplomacia, passa, por derradeiro, para a sociedade civil, sem qualquer interveniência do estado, isso assinala que esse estado, pelas regras do direito internacional público, está abrindo mão da própria soberania, uma vez que um dos vetores para o reconhecimento da soberania é ter política externa, forças armadas e território próprios.

Não causa estranheza, portanto, que, após um século, a Europa incorra nos mesmos erros, preterindo a paz, em favor da guerra, como vem fazendo o Brasil após o golpe de Estado de 2016, em que há influência crescente dos militares sobre a política externa, sob todos os pontos de vista, da política exterior propriamente dita até a disparidade monumental entre ambos os orçamentos da diplomacia e da defesa.

Para tentar fugir de realidade tão crua e dramática, vale recorrer a uma ucraniana-brasileira, Clarice Lispector, trazendo-nos alguma poesia em face da vida, do mundo imenso e da vastidão de ambos: “Meu Deus, como o mundo sempre foi vasto e como eu vou morrer um dia. E até morrer vou viver apenas momentos? Não, dai-me mais do que momentos. Não porque momentos sejam poucos, mas porque momentos raros matam de amor pela raridade.”

Quanta esperança em Clarice, em suas crônicas, coletadas no volume “Aprendendo a viver” (editora Rocco), organizadas e posfaciadas por Pedro Karp Vasquez: “Impossível, diz em eco a mornidão ainda tão mordente e fresca da primavera. Impossível que esse ar não traga o amor do mundo! repete o coração que parte sua secura crestada num sorriso. E nem sequer reconhece que já o trouxe, que aquilo é amor. Esse primeiro calor ainda fresco traz: tudo. Apenas isso e indiviso: tudo…Pois quando me demoro demais nela e procuro me apoderar de sua levíssima vastidão, lágrimas de cansaço me vêm aos olhos: sou fraca diante da beleza do que existe e do que vai existir. E não consigo, nesse adestramento contínuo, me apoderar do primeiro regozijo da vida.”

Que as culturas dos empobrecidos, dos marginalizados nos resgatem da aridez do pensamento hegemônico, esse, sim, pobre, excêntrico, sem esperança de resgate.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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