Economia

A eterna farsa orçamentária com ajuda do Executivo e do Legislativo

Há conivência com orçamentos onde a previsão de receita é uma ficção para acomodar os gastos desejados

Fausto e Mefistófoles - Eugene Delacroix
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Recentemente, tivemos uma boa notícia. O Legislativo, em legítima defesa, aprovou uma medida que lembrou ao Executivo que ele não pode continuar a confundir os maus hábitos de alguns políticos com a satanização da política, o único exercício civilizado de solução dos inevitáveis conflitos nas sociedades republicanas e democráticas. Estabeleceu-se uma trégua sem a qual as expectativas otimistas apoiadas na aprovação da reforma previdenciária, preliminar para a recuperação do crescimento econômico, ou seja, do aumento da produtividade do trabalho (a soma do que todos os trabalhadores produzem), não se realizarão.

A política econômica voluntarista que produziu a década de menor crescimento do último século deixou como herança 13 milhões de desempregados, além de 10 milhões que gostariam de trabalhar mais e 5 milhões de desacorçoados que desistiram de procurar emprego. O mais injusto desperdício de recursos que um país pode fazer é o de não utilizar o trabalho de seus cidadãos. A recuperação do emprego tem sido muito lenta e não vai mudar com mágica. Só a rápida aprovação de uma reforma da Previdência suficientemente robusta pode estimular os investimentos privados em infraestrutura e dar tranquilidade ao Banco Central para estimular a ampliação do crédito com maior competição no setor financeiro e menor taxa de juros.

Foi surpreendente (e suspeita!) a demonstração de “eficiência” da Câmara dos Deputados, ao votar uma “pauta-bomba” projetada para ser depositada em 2015, no colo da ex-presidente Dilma (existem outras!). Em pouco mais de 60 minutos, aprovou-se uma reforma constitucional em primeiro e segundo turnos, com quórum superior a 90%. Como óbvia lambuja, aprovou-se uma emenda de plenário que substituiu um dispositivo mortal, o orçamento obrigatório para políticas públicas, por uma redação confusa que, seguramente, vai ser judicializada se aprovada no Senado. Com a proposta original sobrariam para o Executivo administrar, discricionariamente, cerca de 3% das suas despesas.

Câmara dos Deputados (Foto: Agência Brasil)

Restou da noite festiva uma curiosa dúvida: teria o governo sofrido uma “terrível derrota” com o apoio do seu próprio partido? Não creio. Num regime republicano e democrático, o Legislativo exerceu seu poder “natural”, nos limites da Constituição, de regular a formulação do orçamento e fiscalizar a sua execução. Nosso quadro institucional deixou em aberto se o orçamento deve ser, ou não, impositivo, o que liberou o Legislativo para regular a matéria, o que não significa impor uma derrota ao Executivo.

Esse é um problema menor para explicar a destruição do nosso equilíbrio fiscal, sem o qual nada voltará ao equilíbrio, como mostrou no Senado o ilustre ministro Guedes. O desastre foi construído a despeito das medidas que deveriam tê-lo impedido inscritas na Constituição de 1988 e na excelente Lei de Responsabilidade Fiscal. A peça orçamentária tem sido uma farsa. O Executivo e o Legislativo são coniventes na construção de um orçamento onde a “previsão” da receita é uma ficção feita para “acomodar” os gastos desejados. Nossos déficits não decorrem das incertezas naturais da conjuntura econômica. São cuidadosamente “programados” e consentidos.

E a coisa só não é mais trágica pelos “contingenciamentos” feitos na sua execução, o que desarticula, principalmente, os investimentos públicos (sem os quais não há desenvolvimento) pela interrupção sistemática do fluxo de recursos a ele destinados. Foi isso que deixou de herança, em 2016, 7 mil obras “em-PAC-adas” que congelam, com taxa de retorno nula, um montante fabuloso de recursos em projetos onde não faltaram voluntarismo e fantasia: Jogos Pan-Americanos, Campeonato Mundial de Futebol, Olimpíadas, refinarias sem projeto, trem-bala etc. Num país em que a responsabilidade pelo equilíbrio fiscal é difusa e tenta-se agora resgatar a receita que Mefistófoles deu ao imperador no Fausto II (1732), de Goethe, continuamos a recusar a preliminar essencial.

E qual é ela? A de que precisamos construir uma instituição independente, composta de membros com mandatos fixos, indicados pelos poderes Legislativo e Executivo, e auditores externos, capaz de, por maioria qualificada, estabelecer a receita a partir da qual se construirá o orçamento. Assim, a variação da dívida bruta/PIB dependerá da relação entre o superávit primário/PIB e do juro da dívida pública/PIB do ano anterior. Tudo claro, transparente e sujeito ao controle oportuno da sociedade.

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