Esther Solano

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Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

À espreita

É preciso ficar atento não só aos bolsonaristas espalhafatosos, orgulhosos de se exibir. Há os recalcados, escondidos na sombra

Foto: Alan Santos/PR.
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Uma bomba caseira com 2 litros de explosivos foi arremessada no evento de pré-candidatura de Lula e Marcelo Freixo no Rio de Janeiro. Ninguém ficou ferido, mas havia uma multidão na Cinelândia.

Talvez a gente não esteja prestando a devida atenção, mas está acontecendo. A esposa do suspeito detido, André ­Stefano Dimitriu, disse ao portal Metrópoles: “Ele sempre foi muito tranquilo, ninguém esperava isso, pegou todo mundo de surpresa. Ele é nem Lula nem Bolsonaro. Ele é de centro”. Essa declaração me fez parar. Obviamente, ela pode ter mentido para proteger o cônjuge de futuras acusações e o marido ser um bolsonarista agressivo e radical, mas talvez não. E esse “talvez” provoca em mim uma profunda preocupação.

Há muito tempo o campo democrata tem se questionado sobre a possibilidade­ de as milícias bolsonaristas mais violentas organizarem atos de brutalidade. Nosso foco sempre está naqueles denominados “fiéis”, “radicais”. Ficamos aflitos com o que poderá ser o papel das polícias em episódios de possíveis motins ou insurreições que provoquem ondas de caos social, com o que poderá ser o papel das Forças Armadas se, como supostas garantidoras da lei e da ordem, entenderem que só Bolsonaro representa lei e ordem. Mas, de fato, há outros perigos invisíveis, anônimos, imperceptíveis, que passam por baixo de qualquer radar por serem silenciosos, não fazerem escândalo, chegarem devagarinho, nas pontas dos pés, sem espetáculo nem rebuliço… “Ele era de centro.”

O protótipo do fascista bolsonarista é puro estardalhaço, um elefante escandaloso, que a cada passo destrói o que pisa. Ele é inflamação, ostentação, xingamento. É visível porque gosta da visibilidade da violência. Ele é ruidoso porque adora o estrépito da retórica cruel. Não gosta de murmurinho nem de andar devagar ou com sigilo. Ele gosta de se exibir e se exibe muito bem na sua própria brutalidade. Ele é o estereótipo do macho, mas um macho que se sente atacado, incompreendido, vítima de um sistema que, segundo ele, se deleita em perseguir os machos bolsonaristas. Este a gente sabe como age. E, sim, dá medo, muito medo, porque uma manada de elefantes furiosos e acuados é extraordinariamente perigosa.

O bolsonarismo não empoderou apenas os machos estridentes. Quem são os outros? Os sujeitos cinza, os que vivem na insignificância de um dia a dia que não os faz protagonistas de nada. Os ressentidos, mas que se ressentem em silêncio. Aqueles que também se consideram vítimas, mas que sentem sua vitimização aparentemente quietos. Aqueles a quem não prestamos atenção porque não aparecem, não se exibem. Eles não se envaidecem de sua violência como o macho elefante, não a expressam em voz alta. Eles ficam quietinhos na sua pequenez e acumulam raiva. Ninguém os enxerga, ninguém os escuta. A própria personalidade os apaga, os extingue da visibilidade social. Só que esse sujeito que vive sua própria castração sem brilho foi visto por Bolsonaro. Esse personagem que vive sua masculinidade numa castração pálida hoje está empoderado pelo monstro. “Ele não era Bolsonaro, era de centro”, “ele não se metia em problemas”, “nossa, era tão quieto em casa, quem poderia dizer”. Mas comprou uma arma e atirou, fez uma bomba caseira e a jogou na multidão.

Eu quase tenho mais medo desse marido aparentemente dócil, desse jovem que nunca debatia sobre política e ficava horas trancado no quarto, desse vizinho que nunca causou problemas, do que da manada de elefantes. Bolsonaro empoderou o elefante e o homem das sombras. Empoderou o macho que espanca sua mulher e aquele que sempre quis espancá-la, mas não o fez, o macho que agride e mata um trans e aquele que mata com o olhar, em silêncio. Empoderou o macho que estupra, violenta e assedia mulheres e o jovem incel incapaz de transar de forma saudável e que canaliza sua própria castração num ressentimento que o afoga. Muitos deles sentem que, pela primeira vez, não são invisíveis porque o bolsonarismo lhes deu voz e imagem. “É a nossa vez”, a vez dos que nos sentimos emasculados pelas mulheres, desvirilizados pelo politicamente correto, os que sentimos que este mundo não nos pertence mais, quando, na verdade, deveríamos ser os donos. Para esses, machos elefantes ou machos silenciosos, é agora ou nunca. Se Bolsonaro perder, o sonho de recuperar um poder que lhes foi roubado, o sonho de não se sentirem capados nunca mais, vai embora. Tenho medo do perigo que pode surgir das sombras. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “À espreita “

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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