Eloisa Artuso

Pesquisa, escreve, desenha projetos e estratégias, dá aulas e palestras como foco em clima e gênero na indústria da moda. É cofundadora do Instituto Febre, organização que pauta a agenda da justiça climática e direitos das mulheres no setor.

Opinião

A esperança está nas transformações de baixo para cima

Nosso compromisso, enquanto humanidade, deveria ser assumir a responsabilidade intergeracional e decidir que tipo de ancestrais queremos ser

A esperança está nas transformações de baixo para cima
A esperança está nas transformações de baixo para cima
Vozes. Os movimentos sociais têm muito a contribuir nesse debate, a exemplo do MST, que há tempos utiliza os conceitos de agroecologia nos assentamentos – Imagem: Renan Mattos/MST
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Eu queria começar o ano escrevendo sobre esperança, mesmo que 2025 tenha começado, literalmente, em chamas. Mesmo que Donald Trump, de volta ao poder e com mais fôlego do que nunca, nos faça querer desistir. Mesmo que 2024 tenha sido o ano mais quente já registrado desde 1850 — e o primeiro a ultrapassar a marca de 1,5°C acima da era pré-industrial, como confirmou o serviço europeu de mudanças climáticas Copernicus no início de janeiro.

Porque esperança demanda coragem. Coragem para olhar a crise climática e agir como se ela fosse real. Encarar a realidade é a essência do verbo “esperançar”, de Paulo Freire — aquele que leva adiante, que faz diferente, que impulsiona a ação e a luta por um mundo mais justo. A esperança, nesse sentido, não é ingênua; é resiliência, é resistência.

Mas basta olhar ao redor para perceber que não estamos agindo como se o problema fosse real. Os incêndios em Los Angeles, alimentados pela combinação de baixa umidade, ventos fortes e temperaturas recordes, são mais uma prova da nossa paralisia. Fica evidente que não estamos preparados para lidar com as consequências devastadoras da crise climática — nem no rico Norte Global, nem no periférico Sul Global.

Mas o que nós estamos fazendo, então? Nós estamos produzindo e consumindo como se houvesse amanhã, como se a realidade fosse outra. Estamos tirando petróleo da Terra para gerar energia suja e produzir poliéster para fazer mais e mais roupas. Estamos promovendo mais desigualdades e roubando o planeta de nós mesmos, porque o crescimento econômico se sustenta na exploração das pessoas e na extração da natureza.

Mas “nós” é muita gente, certo? São as grandes corporações de moda — do fast fashion ao luxo — porque bastam quatro dias para um CEO de uma das cinco maiores marcas globais ganhar o que um trabalhador têxtil de Bangladesh levaria uma vida inteira para receber. São os super-ricos, porque bastariam 2,2 bilhões de dólares por ano para garantir um salário digno aos 2,5 milhões de trabalhadores do vestuário no Vietnã — um terço do que as cinco maiores empresas do setor pagaram a acionistas em 2016.

Em 2025, o dia 10 de janeiro ficou conhecido como “Dia dos Ricos Poluidores”, quando a Oxfam revelou que o 1% mais rico da população mundial já havia consumido toda a sua cota anual de emissões de gases do efeito estufa. A metade mais pobre da humanidade, por outro lado, levaria quase três anos para emitir a mesma quantidade de CO₂. E, como sempre, esse abismo tem um recorte de raça, gênero e geopolítica.

Os países “desenvolvidos” seguem operando um sistema colonial que mantém os “subdesenvolvidos” presos à lógica da devastação ambiental para abastecer suas cadeias produtivas. O Brasil, hoje o maior exportador de algodão do mundo, destrói biomas, expulsa comunidades tradicionais e envenena terras para alimentar essa engrenagem global. Mas, no fim das contas, o PIB cresce — e isso basta para que o modelo continue.

Em nome do desenvolvimento e do progresso, o lado “desenvolvido” do planeta, depende da contínua exploração de matérias-primas do lado “subdesenvolvido”. A moda, como a filha predileta do capitalismo, ajuda essa grande engrenagem a amplificar a crise ecológica e civilizatória em que estamos vivendo.

O crescimento e o progresso, que supostamente deveriam melhorar a vida de milhões, falham repetidamente. Em todas as partes do mundo, as pessoas enfrentam o impacto físico e mental do colapso ambiental e da emergência climática.

Mas há também esperança. A esperança está no pós-extrativismo, no Bem Viver, no decrescimento. Está nas experiências concretas de agroecologia, economia solidária e reforma agrária, que constroem pontes para uma transição justa.

Ela está no projeto de costura que tira mulheres da vulnerabilidade socioeconômica nas favelas de São Paulo, garantindo autonomia financeira e emocional. Está no cultivo de algodão agroecológico no semiárido nordestino, que promove segurança alimentar e equidade de gênero. Está na capacitação de costureiras informais no agreste pernambucano e na luta por políticas públicas que garantam seus direitos. A esperança está nas transformações de baixo para cima.

Nosso compromisso, enquanto humanidade, deveria ser assumir a responsabilidade intergeracional e decidir que tipo de ancestrais queremos ser para as próximas gerações — que, injustamente, terão de herdar um futuro inóspito, produzido por um sistema predatório que só beneficia os poucos no topo da pirâmide.

A esperança é essa voz que se recusa a aceitar o colapso como destino. É o ato de dizer “não, eu não concordo”. É a crença em futuros melhores. Como uma mensagem de amor para as gerações que virão:

“Nós acreditamos em vocês e queremos imaginar outros mundos possíveis para conseguir mudar este aqui.”

Precisamos recuperar nossa capacidade de imaginar.

Os desafios são imensos, as limitações são reais. Mas há uma luz no fim do túnel. Não será fácil, mas é o único caminho possível se quisermos continuar existindo. Ainda há esperança.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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