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Opinião

A escritora dos sete instrumentos

Tatiana Belinky deixou um 
inesgotável legado, cujo valor 
só pode ser determinado 
pelos seus incontáveis 
leitores e telespectadores

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Tatiana Belinky nasceu em 18 de março de 1919 em Petrogrado, cidade russa que voltou a ser conhecida como São Petersburgo, nome com que foi fundada, depois de ter sido chamada de Leningrado, entre 1924 e 1991, em homenagem ao líder da revolução dos sovietes, ocorrida em 1917.

Tatiana residiu em Petrogrado por apenas dois anos, tendo sua família se transferido para a Letônia, república então independente situada nas proximidades da Rússia ocidental. Os Belinky permaneceram em Riga, a capital daquele país, até 1929, quando decidiram migrar para a América do Sul.

Foi em São Paulo que se radicaram, nunca deixando a pátria que os acolhera. Aqui Tatiana estudou, trabalhou e escreveu, legando para a cultura brasileira um patrimônio de mais de cem livros publicados e uma participação intensa na história do teatro infantil brasileiro e da encenação de peças destinadas a crianças e jovens.

Dominando as línguas que conheceu na infância – o russo, o letão, o alemão e o iídiche – e o português e o inglês que aprendeu depois, Tatiana empregou-se como secretária e, depois, como representante comercial, substituindo o pai, que falecera em acidente aéreo. Em 1940, casou-se com o médico e psicoterapeuta Júlio Gouveia (1914-1989) e sua vida começou a mudar.

O marido acreditava bastante no poder dos jogos teatrais, que ajudavam os pacientes a curar traumas e superar dificuldades psíquicas, o que deve ter aproximado a esposa de um universo que ela apreciava nos livros, mas que não praticava como criadora. Porém, a partir de 1948, passou a ocupar-se, juntamente com Gouveia, da tradução e da adaptação de peças endereçadas às crianças.

O primeiro texto representado foi Peter Pan, do escocês J. M. Barrie (1860-1937), encenado de modo amador durante uma festa de família, mas logo transferido para o Teatro Municipal de São Paulo para ser exibido em evento filantrópico. Peter Pan não era um texto ignorado, já que Monteiro Lobato (1882-1948) promovera sua adaptação em 1930, mas na forma de narrativa, não na versão original, destinada ao teatro.

Assim, a iniciativa do casal Gouveia é duplamente relevante: assinala o início da dedicação de Júlio e Tatiana ao teatro para crianças e jovens e caracteriza a inovação nos processos de difusão para essa plateia especializada, buscando obras modernas e ainda não suficientemente populares no Brasil. Para se avaliar a importância desse gesto, basta lembrar que a produção cinematográfica de Peter Pan, oriunda dos estúdios Disney, data de 1953.

tatiana

Inaugura-se então a primeira fase da ação cultural de Tatiana Belinky, nesse período acompanhada permanentemente do marido. Entre 1948 e 1951, o grupo de dramaturgia fundado por eles, o Teatro Escola de São Paulo (Tesp), apresentou-se semanalmente para público preferencialmente escolar, com patrocínio da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.

O grupo, porém, não se limitou às apresentações presenciais. Levando à frente sua ousadia e seu desejo de inovar, encenou, no Natal de 1951, a peça Os Três Ursos na televisão. O texto originara-se da adaptação, por Tatiana, da história Cachinhos Dourados e os Três Ursos, que a norte-americana Charlotte Chorpenning (1873-1955) escrevera para o teatro, a partir de um conto folclórico tornado famoso graças à sua transcrição pelo poeta britânico Robert Southey (1774-1843). Nascida da tradição oral e migrada para a literatura e o drama, Os Três Ursos, graças à inventividade de Tatiana, chegou aos televisores paulistas.

O passo seguinte não se fez esperar: em 1952, a TV Paulista começou a operar em regime experimental e os Gouveia -foram convidados a produzir peças para esse meio, que, naquele começo de década, iniciava sua trajetória no Brasil. O casal não podia fazer escolha mais adequada: adaptou duas narrativas de Monteiro Lobato, A Pílula Falante e O Casamento de Emília, extraídas de Reinações de Narizinho, e mais uma vez alcançou grande sucesso.

No mesmo ano, é Assis Chateaubriand (1892-1968) quem os convoca para colaborar na televisão: tendo fundado a pioneira TV Tupi, em 1950, Chateaubriand almejava ampliar sua grade de programação com teleteatro, e ninguém melhor do que Júlio e Tatiana para oferecer o melhor daquele gênero para crianças e jovens.

Assim começou a primeira adaptação de O Sítio do Picapau Amarelo na forma de série, iniciativa que, inaugurada em 1952, estendeu-se até 1966. A série, motivada pelo recurso às histórias de Lobato, era encenada ao vivo, pois, na época, inexistia a tecnologia do videoteipe, de modo que tudo precisava funcionar à perfeição enquanto era exibido aos espectadores.

A segunda fase da ação cultural de Tatiana começou por volta de 1972, quando se dedicou à crítica de literatura infantil na imprensa paulista, especialmente na Folha de S.Paulo e no Estado de S. Paulo. Colaborou a partir de 1980 com a Folhinha, encarte dirigido a crianças e adolescentes, o que tornou a posicioná-la perante o público juvenil, como ocorrera 30 anos antes. Por isso, não surpreende que, após 1985, ela tenha se dedicado integralmente a essa geração, herdeira provável da plateia dos anos 50 que acompanhara os episódios do Sítio, mas não menos interessada em aventuras com a linguagem literária.

Seus primeiros livros para a infância e a adolescência, como A Operação Tio Onofre e Medroso! Medroso!, datam de 1985. A autora principiava sua trajetória na ficção com narrativas, mas logo descobriu as virtualidades da poesia, à qual somou sua habilidade de tradutora. Lançou então uma de suas obras mais conhecidas, Limeriques, baseada nos limericks irlandeses, gênero poético em que se notabilizou o inglês Edward -Lear (1812-1888) e que se caracterizam pela comicidade e pelo non sense. Ao lado deste, podem-se colocar outros, como Bregaliques, Cacoliques, Limeriques dos Tremeliques, Mandaliques (Com Endereço e Tudo) e Medoliques.

Mas a narrativa e a poesia não esgotaram a produção de Tatiana, que se voltou à adaptação, seja de clássicos da literatura infantil, como os contos de fadas dos Irmãos Grimm, seja de narrativas de renomados escritores europeus, como Lewis Carroll (1832-1898), autor de Alice no País das Maravilhas, ou seu conterrâneo Anton Tchekhov (1860-1904), entre outros. Também se dedicou ao relato memorialista, de que são exemplos as obras Bidínsula e Outros Retalhos, de 1990, e Transplante de Menina: Da Rua dos Navios à Rua Jaguaribe, em que relembra histórias de família, a vinda ao Brasil e as primeiras aventuras na televisão.

Em 2012, Tatiana recebeu um dos principais prêmios atribuídos a um intelectual brasileiro, o Troféu Juca Pato, conferido pela União Brasileira de Escritores. Não é para menos: ela, que faleceu em 15 de junho de 2013, deixou à arte brasileira um inesgotável legado de ações e de obras, cujo valor só pode ser determinado pelos incontáveis leitores e telespectadores com os quais a autora se comunicou e interagiu.

*Publicado originalmente em Carta Fundamental

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