Opinião

A encíclica de Papa Francisco: fraternidade e revolução na religião

Francisco pontua que a pandemia é resultado da crise política e ética que privilegia o “deus” mercado em prejuízo dos seres vivos

Foto: Pixabay
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“Um cristão, se não for revolucionário, neste tempo, não é cristão”

Papa Francisco

A publicação da Encíclica “Fratelli Tutti”, pelo Papa Francisco no sábado 03, marca um dos momentos políticos mais importantes da atualidade. Em primeiro lugar, pelo próprio título, que recorda sermos todos irmãos e irmãs, não importando a condição socioeconômica, cultural, religiosa, nacional, étnica ou sexual.

Portanto, somos todos responsáveis uns pelos outros e portanto devemos estar prontos a responder a Deus e aos demais irmãos e irmãs pela vida de nossos semelhantes, pois Deus e toda a comunidade internacional podem, a qualquer momento, indagar-nos sobre a vida deles, como Deus perguntou a Caim: “O que é de teu irmão”?

A resposta do assassino (“O que tenho a ver com isso?”) foi a mesma de Bolsonaro com relação às mortes pela pandemia e às queimadas no Brasil – que vitimaram seres humanos, animais e plantas – holocausto raramente presenciado pela humanidade e que deixou o mundo estarrecido.

Em segundo lugar, porque Francisco explica, de forma extremamente didática, que a pandemia é resultado da crise política, ética, atual, que privilegia o “deus” mercado, em prejuízo dos seres vivos. Por esse motivo, ressalta que para sairmos da atual situação será necessário deixar de adorar aquele falso deus e colocar as pessoas em primeiro lugar, em comunhão com toda a criação.

Nesse sentido, explica que o falso deus propugna que os ricos devem ficar cada vez mais ricos, pois assim a riqueza irá transbordar para os pobres, como defendia a ditadura brasileira, Ronald Reagan, Margareth Thatcher, Trump, Bolsonaro e Guedes, entre outros genocidas.

Por óbvio, isso não aconteceu em qualquer parte do mundo, pois foram os copos que aumentaram e jamais houve qualquer transbordamento de riqueza, ao contrário.

Explicar isso à população de todo o mundo representa o maior desafio desta geração. Só uma economia baseada na inclusão e não na exclusão tem capacidade de crescimento sustentável e de trazer bem comum e felicidade a todos os irmãos e irmãs, garantindo os direitos humanos fundamentais, universais, a todas e todos.

Em terceiro lugar, Francisco incorpora o “ver, julgar e agir” da Encíclica “Mater et Magistra” do antecessor, São João XXIII, e propõe que a comunidade internacional busque estabelecer mecanismos que possam garantir o respeito aos irmãos e irmãs, assim com a toda a criação, uma vez que o atual modelo de gestão intergovernamental da vida na terra parece ter entrado em falência, como vemos no caso do Brasil, cuja irresponsabilidade atinge aos vizinhos, seja pelas alterações climáticas geradas pelas queimadas, seja pela condução belicista, irresponsável, da política externa.

Com efeito, Francisco nos chama a parar, ver, julgar, refletir e agir. Como dissera D. Hélder Câmara: “Parar de maneira certa é continuar”. Parar Trump e parar Bolsonaro será garantir a continuidade da vida na terra, a não extinção dos seres humanos e de toda a criação.

Em sinal de comunhão com os irmãos dele, líderes de outras confissões religiosas, Francisco referiu-se ao principal Ímã sunita – os sunitas são a maioria dos muçulmanos – com quem assinara importante documento sobre o diálogo interreligioso, a exemplo do que fizera com a Encíclica “Laudato Sii”, que declarou ter sido inspirada pelo Patriarca Ecumênico Bartolomeu I.

Vale recordar que, segundo Samuel Sérgio Salinas, em “Islã: esse desconhecido”: “No caminho maometano, a fé e a política andam juntas, sem dissociação”. Em outra passagem, recorda que: “…o islamismo é considerado teocracia, mas teocracia laica (sem sacerdotes) e igualitária. Todos os crentes são irmãos”. 

Parar Trump e parar Bolsonaro será garantir a continuidade da vida na terra, a não extinção dos seres humanos e de toda a criação

E agrega: “Ao descrever os fundamentos da constituição política corânica, Gardet (1977) assinala três pontos essenciais do código de vida islâmico: a obediência ao que detém o comando (legitimado pela vontade de Deus, porque somente a Deus pertence o poder); o dever do comandante de consultar os subordinados; e o dever, dos crentes, de se instruírem reciprocamente (Corão 4, 59; 4, 80; 42,38)”.

Convém lembrar que, além da leitura diária do Livro Sagrado, o Corão, o muçulmano deve o zakat, contribuição para os mais pobres. A propósito, Salinas recorda: “O zakat é um direito; não é donativo ou favor”. Outra observação importante de Salinas sobre as dinastias islâmicas, em contraposição às ocidentais, na Idade Média: “Predomina na visão religiosa e na conduta diária o princípio de igualdade entre os seres humanos. Por essa via pode-se avaliar o porquê da repulsa que manifestam, contra o islamismo, as monarquias de direito divino e as teocracias, no sentido ocidental do termo”.

Salinas recorda que: “A solidariedade da Umma parece ser a principal contribuição da religião islâmica à esfera da política”; coerente, recorda o Corão, para o qual: “Deus é entendimento, compreensão”. O autor lembra ainda que: “Em sentido amplo, o Islã engloba três aspectos: religião, estado e cultura”. Aduz que: “Esta flexibilidade social era reforçada pela elevada cultura cosmopolita (incluindo outras fontes, como a grega, a indiana e a chinesa)”.

Que a fraternidade universal nos leve a mais cultura e a cultura nos torne mais curiosos, amáveis, amados e amadas, cuidadores, cuidados e cuidadas pela criação. A “Pacha Mama” então vencerá, como esperamos que ocorra nas próximas eleições na Bolívia, derrotando lindamente um necrogolpe de Estado, crime do qual Bolsonaro e Ernesto Araújo também são cúmplices.

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