Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

A emoção de ouvir um disco inédito de Jards Macalé

O meu mundo caiu, mas quem foi que disse que a dor de cotovelo de Lupicínio Rodrigues acabou?

Macalé fazia um jogo de gato e rato com a Tropicália
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Tinha eu vinte e um anos de idade quando comprei o primeiro disco de Jards Macalé. Para comprar, separei parte do salário mínimo que recebia do Ministério da Agricultura como Auxiliar de Agrônomo e fui até as Lojas Gomes, na Avenida Afonso Pena, a melhor de Belo Horizonte. O disco estava exposto na vitrine, ao lado do LP inglês de Caetano, Negro é Lindo, de Jorge Ben, Eletric Warrior, do T.Rex e Imagine, do John Lennon.

Conhecia Jards Macalé de um festival, onde ele cantou Gothan City, embrulhado num pano preto, como se fosse um morcego.

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Gostei de ver aquilo na televisão, a performance daquele cara meio loki, quase doidão, barbudo e com uma voz muito particular. Sai de lá com o disco dentro de uma sacola azul e branca, sem saber o que tinha ali dentro.

Em Uganda, Idi Amin Dada dava um golpe e derrubava Milton Obote. Em Washington, quinhentas mil pessoas saiam às ruas em protesto contra a guerra do Vietnã. O Paquistão Oriental virava Bangladesh e a República Democrática do Congo virara Zaire. O ditador Francisco Franco nomeava Juan Carlos seu sucessor, a Intel lançava o primeiro microprocessador do mundo e o programa The Ed Sullivan Show chegava ao fim, quando levei pra casa o primeiro Macalé.

Ele trazia na capa o rosto encoberto por um parangolé de Hélio Oiticica, escondendo a barba espessa e um boné na cabeça encobrindo os caracóis dos seus cabelos.

Eu tinha uma vitrola três em um da Phillips e foi nela que ouvi os primeiros acordes de Farinha do desprezo, Revendo amigos, Mal secreto e 78 rotações. Depois, virei pro lado B para ouvir Movimento dos Barcos, Meu amor me agarra & geme & e treme & chora & mata, Let’s play that, Farrapo humano e A morte.

Eu já estava me preparando para deixar o país, arrumando gorros, cachecóis, meias e luvas na mala, quando ouvi essas canções.

O disco de vinil foi transformado em fita K-7 para caber na mochila e levantou voo junto comigo. Versos ficaram na minha cabeça durante todos esses anos de frio: Já comi muito da farinha do desprezo, é impossível levar o barco sem temporais, meu amor é um tigre de papel e não preciso de gente que me oriente.

O segundo LP, Aprender a Nadar, comprei na Lido Musique, na avenida dos Champs Elysées. Importado, caro, com manchas de sangue na contracapa. Pedi para embrulhar pra presente e fui pro Quartier Latin, onde morava num quarto quatro por quatro. Foi ali no número 4 da Rue Paillet que coloquei o disco na vitrola:

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Muitos anos depois, sentado num boteco em Belo Horizonte, contei a Jards Macalé que havia comprado o seu disco na Champs Elysées e ele reagiu com um Filhos da Puta! Nunca me pagaram um tostão por discos vendidos na Champs Elysées.

Estamos no início de 2019. Vitrola três em um por aqui não há mais, exílio não há mais, aquela Paris branca de neve não há mais para mim. Croque Monsieur nos cafés do Boul’Mich não há mais, pamplemouse com açúcar no café da manhã não há mais. Não restou nada daquele Aprender a Nadar. Envelope verde-amarelo, jornal Movimento, caramelo Carambar, o restaurante universitário do Mabillon, Sãozinha, Zé Octávio, Cacá, Aroldo, Zé Antônio, a Maison des Jeunnes Les Hauts de Belleville, aqui pertinho, não há mais.

Estou aqui diante do meu computador, no Spotify, ouvindo Besta Fera, o novo disco de inéditas de Jards Macalé. Não tenho o encarte nas mãos para ir acompanhando as letras, uma por uma, como outrora: Vampiro de Copacabana, Besta Fera, Trevas, até chegar em Buraco da Consolação, um bolero que ele canta acompanhado de Tim Bernardes:

Se você não acredita e mesmo assim quer ir pela contramão/E vai correndo pro centro aonde morava o seu coração/Sei que não vai gostar nada do que do que encontrar quando chegar por lá/ O centro do peito vazio que abandonaram depois de usar/Então você só se encolhe num canto daquele vazio de dar dó/E fica com frio e com medo numa lua suja de azul e de pó/E quando a noite cair e cobrir por completo de escuridão/Você enfim poderá enxergar que beleza que é o amor.

O meu mundo caiu, mas quem foi que disse que a dor de cotovelo de Lupicínio Rodrigues acabou?

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