José Isaías Venera

É jornalista e professor dos cursos de Comunicação da Univille e Univali, em Santa Catarina.

Adércia Bezerra Hostin dos Santos

É presidenta do Sindicato dos Professores de Itajaí e Região/SC, coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais e Formação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e membro da diretoria do Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE).

Opinião

A educação como prática de liberdade com Freire & Kafka

O conhecimento na perspectiva freiriana é elaborado em uma intercomunicação

Foto: MST
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No conto Diante da lei, o escritor tcheco Franz Kafka constrói a parábola de um camponês que passa a vida inteira consultando um porteiro se poderia entrar pela porta da lei. No final da narrativa, já quase cego e surdo, descobre que, aquela porta, somente ele, o camponês, poderia atravessar. O porteiro, então, tranca definitivamente a passagem e vai embora. A consciência que atribui ao outro — representante do poder/lei — os rumos de sua própria vida se mantém servil ao opressor; tema da alienação recorrente na literatura kafkaniana.

A parábola serve como uma analogia às críticas feitas pelo educador Paulo Freire à “educação bancária”, o modelo de ensino que considera o educando vazio de saber, no qual o conteúdo transmitido funciona como uma lei que demarcaria o lugar do aluno no mundo. Em oposição, Freire defende a educação libertadora, que inclui o saber do aluno no processo, em um dialogismo potente, conduzindo-o a atravessar a porta enquanto ato de resistência em favor de um mundo inclusivo.

No exílio à Pedagogia do Oprimido

Em 1968, o educador Paulo Freire, exilado no Chile, publicou sua obra mais conhecida, Pedagogia do Oprimido. Não por acaso, foi no mesmo ano do Ato Institucional Número 5 (AI-5), o mais opressivo ato da ditadura militar (1964-1985). Freire partiu para o exílio em 1964, após acusação de práticas subversivas que o levou à prisão. Do lado do governo federal, perseguições, torturas, assassinatos; um governo sob o signo da opressão. Do lado oposto, da resistência, sob o signo da libertação, Freire inscreveu seu nome, também em âmbito internacional, como um dos maiores educadores do seu tempo.

No centro de sua obra, as práticas de liberdade em oposição à “educação bancária”. Afinal, é crítico da educação que concebe o conhecimento como um arranjo de conteúdos a serem transmitidos aos alunos, considerados pela “educação bancária” vazios de conhecimento. Sua obra se faz ainda mais necessária, sobretudo atualmente, quando há um recrudescimento de práticas fascistas de apoio a um novo golpe militar.

Educação bancária do nosso tempo

De um lado, um arranjo curricular e o depósito virtual do conteúdo automatizado por plataformas interativas, e, de outro, alunos atraídos por discursos que vendem a ideia de liberdade para montar seu próprio currículo, além da possibilidade de fazer a trilha formativa a partir de qualquer lugar (do banheiro ao parque de diversão).

Em Pedagogia do Oprimido, Freire defende a “educação problematizadora”, opondo-se à concepção bancária. A problematização parte do princípio de que o conhecimento é sempre relacional e de alguma coisa. Assim, não existe conhecimento separado das práticas, das relações, das lutas de classe, das afirmações identitárias etc.

Intercomunicação

O conhecimento na perspectiva freiriana é elaborado em uma intercomunicação. Para ele, “o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação”. Refuta-se por completo a possibilidade, hoje comum, de uma educação automatizada em plataformas digitais na qual os conteúdos desconectados da vivência teriam função transformadora. Na educação libertadora, os signos são instâncias de mediação cujo valor depende dos sujeitos envolvidos, criando laços sociais que afirmem a vida.

Atualizando o debate para o setor privado, na “educação bancária”, o professor é um custo, e a automatização de conteúdos em plataformas interativas é a “solução” para ampliar lucros. Na educação problematizadora, o professor integra o processo intersubjetivo que torna possível a implicação do sujeito educando no conteúdo curricular e na transformação da cultura.

Na intercomunicação, o mundo não é comunicado, pois, dialogicamente, constrói-se um conhecimento do mundo. Na “educação bancária” — poderíamos chamar de educação neoliberal —, a função é perpetuar as relações de dominação, ou seja, de opressão, mas, agora, muito mais pela via da submissão do trabalhador às exigências impostas pelo mercado, ao mesmo tempo em que o educando é subjetivado a valorizar a sua anulação no processo. Na educação problematizadora, busca-se abrir caminhos para a emancipação, cujo saber se articula com a posição cultural, social e histórica do educando.

A educação bancária lida com o saber centralizado e sem abertura à experiência e aos saberes do educando, entendido como uma tábua rasa. Hoje, não por acaso, na educação neoliberal, o saber é entendido como um banco de dados. Sobre o aluno, interessa aquele saber que é útil para vender a mercadoria educação nos rastros deixados no ciberespaço que ajudam a compor as estratégias de captura do sujeito, uma espécie de panóptico digital, via algoritmo, sem que o alvo tenha consciência disso. Em outros termos, é aquilo que o psicanalista Félix Guattari chamou de servidão maquínica, bem antes da onipresença do digital nas nossas vidas.

O “homem não aprende a nadar numa biblioteca”

Em Paulo Freire, a educação não pode ser pensada sem uma práxis libertadora. Opondo-se à práxis opressora, cujo instrumento de poder serve para perpetuar as diferenças econômicas e sociais, a práxis libertadora pressupõe o diálogo como pré-condição. O diálogo como “encontro para a ‘pronúncia’ do mundo”, caminho para a humanização dos sujeitos.

A práxis pressupõe a pronúncia do mundo, entendendo que estamos inscritos neste mundo e, por meio de nós, o mundo não para de ser escrito. Cabe, então, na práxis libertadora, promover a reflexão e a ação para um mundo mais inclusivo. A transformação, ou a revolução, é pela via da inclusão, opondo-se ao modus operandi opressor (ou fascista), que é pela via da exclusão ou massificação padronizadora (o que exclui também as singularidades).

Ficamos às voltas de atravessar a “porta da lei” sem pedir permissão aos porteiros dos que querem dominar nossa subjetividade.

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