Ana Paula Bernardes

Gestora e consultora de projetos na FESPSP na área de resíduos, economia circular e inovação.

Opinião

A dualidade da COP30 e a urgência de um novo modelo econômico

Por mais comprometidos que estejam ativistas, pesquisadores e até alguns líderes, o poder real de transformação segue sequestrado por estruturas que se alimentam justamente do modelo que nos trouxe até aqui

A dualidade da COP30 e a urgência de um novo modelo econômico
A dualidade da COP30 e a urgência de um novo modelo econômico
Protestos de indígenas marcam a COP30, em Belém, no Pará. Foto: Pablo PORCIUNCULA / AFP
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Eis que cheguei à COP30. A COP do Brasil. A COP da Amazônia. Trinta anos debatendo uma organização sociopolítica internacional que nos mantenha vivos — e com qualidade de vida.

A COP30 seria o marco histórico que, há alguns anos, soava como utopia distante. Depois de uma década desde o Acordo de Paris, imaginava-se que este seria o momento de celebrar conquistas, de discutir avanços concretos nas metas de mitigação — não de revisitar as mesmas pautas com novas urgências e antigos discursos. Dez anos se passaram e, em vez de consolidar soluções, seguimos tentando entender como adaptar nossas sociedades e economias às consequências do que não foi mitigado.

Faltando apenas cinco anos para 2030 — o primeiro grande marco simbólico da virada climática — esperava-se que o debate já estivesse em outro patamar. Que estivéssemos tratando de novas tecnologias em larga escala, de uma economia regenerativa integrada, de um mercado financeiro reformado para recompensar impacto positivo — e não apenas crescimento. Mas a realidade é mais complexa e contraditória. E é nesse contraste que a COP30 se revela profundamente bipolar.

Por um lado, é impossível não se emocionar com a cena: vejo uma Belém tomada por diferentes idiomas, sotaques, cores, credos e ideias. É bonito ver tanta gente reunida, com o coração e a mente voltados para um mesmo propósito — salvar o planeta, cada qual à sua maneira. Há uma energia viva e vibrante nas ruas, uma sensação de pertencimento global e uma esperança renovada no poder do coletivo.

Uma regulação forte e inteligente pode limitar a externalização de custos ambientais e sociais que o mercado normalmente ignora

Por outro, basta um passo para fora da bolha dos eventos e painéis para sentir o peso da outra face. A bipolaridade aparece quando percebemos que o mundo, de fato, continua sendo movido por uma lógica que pouco tem a ver com a preservação da vida e muito com a remuneração das ações nas bolsas de valores. As decisões que realmente mudam o curso do planeta ainda não estão nas plenárias da COP, mas nos conselhos de administração das grandes corporações — nas mesas de especulação financeira. E, por mais comprometidos que estejam ativistas, pesquisadores e até alguns líderes, o poder real de transformação segue sequestrado por estruturas que se alimentam justamente do modelo que nos trouxe até aqui.

É nesse ponto que entram os governos, as regulações e a coragem institucional para enfrentar o mercado. Porque o mercado — por si só — não tem sentimento, não sofre com desigualdade, não se importa com a regeneração de ecossistemas, com justiça intergeracional, com paz ou com igualdade. O mercado age pela lógica da remuneração do capital, pelo retorno do investimento — e não por ética.

Nesse sentido, as regulações — leis antitruste, limitação à concentração econômica, impostos progressivos, proteção ambiental, direitos dos trabalhadores, tributação justa — são instrumentos cruciais para a reorganização econômica de que precisamos. É papel do Estado ser árbitro, não refém das corporações. Uma regulação forte e inteligente pode limitar a externalização de custos ambientais e sociais que o mercado normalmente ignora. Estudos mostram que economias com mercados mais regulados e forte atividade estatal tendem a obter melhores resultados em emprego, proteção social e redução da desigualdade. O indicador de qualidade regulatória aponta que países com melhor estrutura institucional oferecem maior estabilidade e previsibilidade.

Vivemos uma nova era geopolítica — o mundo já não é dominado por um único eixo ocidental e neoliberal. Estamos na era de um sistema multipolar, em que grandes potências regionais (Ásia, América Latina, África) e coalizões diversas disputam influências econômicas, tecnológicas e climáticas. Esse mundo multipolar exige que as nações retomem soberania e reconstruam seus instrumentos econômicos e institucionais para responder tanto ao poder global do capital quanto aos seus próprios cidadãos.

É preciso apostar em um novo modelo econômico. E parte desse modelo é justamente o oposto do neoliberalismo clássico — que apostou na desregulação, no enfraquecimento do Estado e na primazia do mercado. Hoje vemos que esse caminho resultou em concentração de riqueza, fragilidade social, externalização ambiental e vulnerabilidades sistêmicas. O novo modelo exige um Estado mais forte, regulação inteligente, e estruturas de propriedade e governança diferentes — um mercado a serviço da vida coletiva, e não o contrário.

Precisamos de um Estado mais independente, com coragem institucional para testar novos arranjos econômicos — romper com dogmas ideológicos e colocar a sustentabilidade, a justiça e a paz como pilares centrais do desenvolvimento. É hora de experimentar regulação financeira mais rígida, taxação de grandes fortunas, transição energética acelerada, economia circular, parcerias público-privadas com accountability e modelos de governança em que o mercado sirva à vida — não o inverso.

O mercado não tem sentimento. Ele não sofre com a desigualdade. Ele não se importa com justiça intergeracional nem com a regeneração da natureza. Ele não é estratégico: é imediatista. Cabe ao Estado — e aos governos que detêm legitimidade democrática — colocar o mercado sob a condição de servir à vida, à paz, à igualdade e à sustentabilidade. Se não fizermos isso, a bipolaridade que se revela na COP30 continuará sendo a norma: esperança e beleza de um lado; impotência e lógica financeira implacável do outro.

A COP30 nos oferece o espelho desse dilema. O desastre de um lado e o palco da oportunidade do outro. A questão é: teremos coragem para transformar o espelho em janela?

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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