Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

A direita empresarial rifa o ministro da Educação

O que está enfraquecendo Camilo Santana não é a crítica do campo educacional, mas o servilismo com o ‘centrão da educação’

Créditos: Wilson Dias / Agência Brasil
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“Governo terceiriza a política do Ensino Médio para fundações empresariais, o ‘centrão da educação’”. Eis o título da coluna mais recente que escrevi para esta CartaCapital, e que suscitou ataques em proporção inédita até mesmo durante o governo de Jair Bolsonaro. O diagnóstico que fiz da secundarização da pauta do ensino médio pelo governo Lula – além da crítica ao papel lamentável da bancada do PT na Câmara na votação do regime de urgência do PL n. 5.230/2023 – desagradou.

Perfis anônimos em redes sociais me classificaram como ingênuo, burro, desonesto, recalcado. Questionaram a minha idade, a qualidade da minha escrita, a minha lisura como pesquisador e até a reputação das duas universidades que me contrataram via concurso público. Teleguiadas, as invectivas também foram desferidas em grupos privados, por indivíduos que nunca dialogaram comigo, mas sentiram-se autorizados a me ofender pessoalmente. Outros tentaram me explicar a diferença entre leis e decretos, o significado de “revogação” e que o MEC tem muitas outras políticas para além do “Novo Ensino Médio”, pelo qual eu alegadamente nutriria algum tipo de fixação. Um teste de paciência a essa altura do ano!

Pois recomendo aos apoquentados que segurem seus suspensórios. Não apenas mantenho cada palavra do artigo anterior, como, à luz dos últimos acontecimentos, acrescento algumas coisas.

A primeira é que a pressão de estudantes e educadores sobre o governo Lula surtiu efeito. O Palácio do Planalto entrou em campo e a votação do relatório do PL de reforma da reforma do ensino médio ocorrerá só em março de 2024, após a Conferência Nacional de Educação (Conae) no final de janeiro. A segunda é que as fundações empresariais, tão veneradas por determinados setores do governo, já estão fazendo o que se esperava: após essa primeira derrota (o adiamento da votação), elas puseram-se imediatamente a rifar o ministro Camilo Santana.

O editorial do Estadão de 21 de dezembro de 2023 exemplifica o papel de “centrão da educação” desempenhado pelas fundações e seus assessores de imprensa voluntários na mídia corporativa. Para a bastilha do conservadorismo paulista, a falha de articulação política do ministro da educação foi responsável pelo “atraso” no “novíssimo” ensino médio. O texto é um primor de distorção e cinismo. Elogia a reforma de Temer, culpa Bolsonaro pelo fracasso do Novo Ensino Médio (NEM) (argumento falacioso que já refutei em outro artigo desta coluna) e joga no colo do MEC e de Camilo a responsabilidade pelo adiamento da votação da reforma da reforma.

O Estadão e os grupos econômicos que ele representa afirmam que Camilo Santana não entregou aquilo que o ‘centrão da Educação’ esperava: a aprovação rápida da reforma, preferencialmente na forma do substitutivo piorado de Mendonça Filho (União/PE). É lícito afirmar, portanto, que havia na direita empresarial a expectativa de que o ministro da educação não estaria disposto a atrapalhar o tratoraço sobre o debate público do ensino médio.

Se Camilo comeu mosca – e nisto, concordo com o editorialista –, foi por não ter defendido o texto do MEC (já coalhado de problemas, frise-se) sobre o do ex-ministro da educação de Temer desde o primeiro momento e por não ter exigido que o Planalto tratasse o PL n. 5.230/2023 com a mesma prioridade das agendas do Ministério da Fazenda. Aliás, o primeiro tweet do Estadão de divulgação do editorial – logo apagado – trazia uma foto de Fernando Haddad. Desejo recôndito?

Na verdade, a falta de articulação do ministro quase fez com que repetíssemos 2016-2017, quando se aprovou uma política estrutural regressiva para o ensino médio brasileiro sem o necessário debate na sociedade. O resultado foi o que vimos nos últimos três anos: estudantes enganados, profissionais da educação ainda mais vilipendiados, barateamento da formação escolar dos mais pobres – tudo embalado e decorado com modos de novidade.

A revelação do engodo, por pesquisas e manifestações estudantis que deslegitimaram o NEM, tirou do empresariado o monopólio do discurso da modernização educativa. Até a denominação irônica “‘novo’ ensino médio” – entre aspas e com variações, empregada há anos na crítica ao NEM – foi absorvida pelo Estadão como “novíssimo” ensino médio (em editoriais de outubro e dezembro). A fórmula também foi utilizada pela jornalista Renata Cafardo em artigo de opinião no mesmo Estadão: “vem aí o ‘novo novo novo ensino médio’”. Não havia ironia quando o “novo” se referia à trágica reforma de Temer.

Apesar da pose de guardiã da razoabilidade política, a direita empresarial é tão autoritária quanto a extrema-direita, e só aceita a vitória pela pauta máxima. Mas como a sua proposta para o ensino médio de massas se mostrou perversa com as juventudes e administrativamente inviável, preferiu sabotar o debate. E como Camilo não entregou a vitória esmagadora desejada, foi jogado na frigideira. De nada adiantaram os salamaleques do ministro com Lemanns e apaniguados. As elites nacionais só toleram o debate público se for de mentirinha, com a vitória total garantida de antemão.

A apropriação do estilo da crítica ao NEM formulada pelo campo popular – agora para arrancar compromissos do governo Lula com a pauta educacional antipovo – sinaliza que a grita do empresariado deve aumentar nos próximos meses. Em entrevista recente à Folha de S. Paulo, o diretor-executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne, reclamou do conspiracionismo e da desconfiança que “criminalizam o aporte técnico e a influência da sociedade civil em políticas educacionais”. Até a “criminalização”, que não raro resulta no encarceramento e na morte de gente pobre e preta, as elites ricas e brancas querem autocomiseradamente tomar para si.

Privatizar a educação pública é só o aperitivo. O projeto de fundações como a Lemann é privatizar todas as relações em todas as esferas da vida (a isso chamamos neoliberalismo). É por isso que os bilionários desejam tanto escarafunchar no currículo da escola das massas. Não há ingenuidade nas aulinhas de “brigadeiro gourmet” e de empreendedorismo juvenil do NEM. Essas aulinhas também são dadas nas novelas, nas propagandas, nos programas de domingo, em projetos nas periferias, nas redes sociais de influenciadores etc. etc.

Mas há quem chame de ingênuo quem se insurge contra uma reforma educacional que pretende retirar de 30 a 60 minutos por dia de acesso ao conhecimento científico, cultural, artístico e humanístico produzido pela humanidade nas escolas de ensino médio do país. Ou oferecer ensino profissionalizante zurrapa que não habilita para profissão nenhuma. Ou validar trabalho juvenil como carga horária escolar.

O que está enfraquecendo a posição de Camilo Santana não são as colunas de opinião e reações do campo educacional, mas a sua genuflexão diante de atores políticos e econômicos cujo projeto societário se opõe ao do direito à educação que ele, como ministro deste governo, deveria defender. A verdadeira base de apoio do MEC não é formada por meia dúzia de “especialistas” de fundações empresariais que operam contra ou a favor do governo a depender da direção dos ventos. Contra esses é que os que assediam a liberdade de opinião deveriam lutar. A sua mesquinharia, contudo, indica que o individualismo das fundações empresariais já venceu em determinados setores dos governos e dos partidos de esquerda.

A ver como Camilo Santana atuará a partir do ano que vem, pois já se constata que os antigos parças do centrão da educação não moverão uma palha por ele – a menos que consigam manter intacta, ou preferencialmente piorar, a reforma do ensino médio de Temer. Já o campo educacional que não vive de mandar emojis de palminhas para sustentar ministros e seus apêndices, seguirá comprometido com a defesa do direito à educação em 2024.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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