Opinião

A demolição da casa de Caio Fernando Abreu

De onde vem tanto descaso, tanto desprezo por nós mesmos? Somos uma nação ou apenas um amontoado de gente?

"Além da camisa imaculadamente branca com todos os botões fechados, o que mais me chamou a atenção foi aquele jeito de galgo que o Caio F. tinha. Magro, elegante, meio tímido, discreto, na dele". Foto: Paulo Giandalia/Folhapress
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“Quanto mais perto as pessoas ficam da verdade, mais tolerantes elas se tornam em relação aos erros dos outros.”
Leon Tolstoi.

Após o golpe de estado de 2016, o Brasil entrou em um túnel de destruição, tristeza e morte.

Simbólica a demolição, na semana passada, da casa do escritor Caio Fernando Abreu, no Bairro Menino Deus (que inspirou música de Caetano Veloso), em Porto Alegre.

Ocioso lembrar que Caio foi, talvez, o maior escritor da década de 80, revolucionando escrita e vidas – inclusive a minha.

Impossível entender aqueles anos da saída da ditadura, o “destape” brasileiro, sem mencionar ou conhecer a obra de Caio.

Quem não leu “Morangos Mofados” perdeu o melhor da vida, não entenderá o Brasil, não sentirá o sabor da liberdade.

A derrubada da moradia de Caio é ainda mais dolorida em uma cidade que já foi símbolo de resistência, criadora do orçamento participativo e sede dos primeiros Fóruns Sociais Mundiais.

Por que nós, brasileiros, nos respeitamos tão pouco?

Em um dos contos da coletânea citada, Caio encerra com um genial “…e foram infelizes para sempre”: o conservadorismo dos homofóbicos que não puderam aceitar uma relação homoafetiva.

O visionário Caio vislumbrava perfeitamente as cloacas do pensamento brasileiro, destapadas por Michel Temer, Sérgio Moro e Jair Bolsonaro.

Os moradores das ruínas de Caio, em Porto (agora, triste) serão felizes? Duvido.

Ao governador do Rio Grande do Sul, também ele gay, não ocorreu que, no país mais homofóbico do mundo, deve a própria vida a Caio? Retribui deixando que sua memória seja destruída?

Infelizmente, o descaso com a memória vai além dos partidos políticos, no Brasil.

O que fizeram os governos populares para ao menos sinalizar a casa? Nada.

Idem para as casas de Elis Regina e Moacyr Scliar, a maior cantora do Brasil e um dos maiores escritores judeu-brasileiros.

Um roteiro turístico-cultural com essas três casas não geraria, conhecimento, emprego e renda?

De onde vem tanto descaso, tanto desprezo por nós mesmos? Somos uma nação ou apenas um amontoado de gente?

Ninguém jamais será profeta na própria terra?

Se nos consola, o mesmo ocorreu na Itália, com Pier Vittorio Tondelli.

Pier Vittorio era o Caio italiano: coetâneos, cultíssimos, ambos revolucionaram a literatura e os costumes dos respectivos países. Entretanto, nem um foi traduzido para o italiano, nem o outro, para o português. Triste sina de dois países que não se conhecem e, assim, não se reconhecem.

Ponte criativa, generosa, que os imigrantes atravessaram (hoje, 25, é o dia do imigrante alemão), mas que temos tanta dificuldade em manter e ampliar.

Em “Lina – uma biografia” (editora Todavia), Francesco Perrota-Bosch recorda a perseguição da ditadura à arquiteta, processada pelas trevas ditatoriais: “Lina Bo Bardi passou anos respondendo a esse processo em liberdade. Foi demorado, mas Tales Castelo Branco considerou que foi um dos processos mais simples dos que advogou na Auditoria Militar naqueles anos de ditadura.”

Em um país em que a oligarquia só fomenta o atraso, aqueles que buscam abrir portas e janelas serão necessariamente perseguidos.

Pior, os que buscam construir belos edifícios, teatros e museus serão considerados verdadeiros inimigos pelas forças do mal.

Naquele volume, o autor relata: “Lina Bo e Pietro Maria Bardi mantiveram por toda a vida uma relação de agradecimento e afeto com Tales Castelo Branco. O diretor do Masp sempre presenteava o advogado com gravuras no final do ano. Lina, por sua vez, dava quadros e gostava de chamá-lo para almoçar: conversavam sobre política, compartilhavam posições de esquerda; ela inclusive convidou o advogado para um almoço que promoveu para o também ex-exilado comunista Oscar Niemeyer. Em todas as ocasiões, Lina reforçava sua gratidão e carinho por Tales, mas, quando se encontravam, os dois nunca mais avançaram em conversas sobre a ditadura brasileira e a experiência do processo. De modo geral, Bo Bardi raramente se referia aos anos do inquérito militar. Uma exceção foi a declaração dada em uma revista meses antes de falecer, na qual assumiu: ‘Nunca fui presa. Perseguição teve aqui também, mas nunca fui presa, porque eu sou um bicho. Eu sei desaparecer muito bem, sou craque nisso.’ Mesmo com os mais próximos, compartilhava muito pouco a experiência sofrida no período. Outro fato fora do comum foi quando presenteou seus colaboradores Marcelo Ferraz e André Veiner com uma pastinha para cada um, contendo cópia xerox da revogação de sua prisão junto a uma imagem de Che Guevara portando uma metralhadora na mão e uma fotografia de Lênin carregando um gatinho nos braços. Também, muitos anos depois de abrigar na sua casa aquela reunião de guerrilheiros, Lina Bo Bardi pediu a Isa Grinspum Ferraz, esposa de seu arquiteto assistente Marcelo, que convidasse sua tia para um almoço. A tia em questão era Clara Charf, viúva de Carlos Marighella. Após retornar, em 1979, dos anos de exílio, Charf foi conhecer pessoalmente Bo Bardi na Casa de Vidro. Lina disse que tinha uma surpresa. A arquiteta pegou a ativista pela mão e a conduziu até a Bardi’s Bowl em couro preto que tinha na sua sala. Lina pediu que Clara nela sentasse e disse: – Marighella se sentou nesta cadeira. As duas choraram.”

Como a física quântica ensina, ficam as energias uma vez presentes.

Ficam Caio, Pier Vittorio e Clara, que, gracas a Deus viva e aniversariante na semana passada, provou daquela verdade, de que não nos esqueceremos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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