Opinião

A democracia suporta os conflitos, mas não a divergência radical

O espetáculo de julgamentos parciais com objetivos eleitorais, além de polarizar, torna a democracia violenta

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

Alguns setores da sociedade brasileira começam a deplorar o que chamam de polarização política, explicando candidamente como essa situação é nociva para o País. Não é nada extraordinário que esse lamento venha de alguns dos principais atores que sugeriram e patrocinaram os dois momentos decisivos da radicalização política: o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula. Não é novidade histórica que os golpes começam por devorar os seus autores e que estes acabem a lamentá-los. Talvez seja melhor começar, no entanto, esse caminho de redenção aceitando a dureza da verdade e sem recurso a eufemismos. O que se passou nos últimos anos na vida política brasileira nada tem a ver com a polarização, mas com a violência política. Mais concretamente, com a introdução da prisão como instrumento do combate político. 

A democracia aguenta bem a polarização. Ela é o reino do compromisso e do diálogo, mas suporta bem os momentos de disputa e de conflito, próprios do exercício da política e inerentes à pluralidade humana. Na verdade, a democracia sempre conviveu com momentos de polarização política – na Europa , nos Estados Unidos e também no Brasil, cujo sistema de eleição presidencial convida e incentiva essa polarização. Nada disso tem a ver com aquilo de que estamos a falar. 

O que a democracia não comporta não é a divergência radical, mas a violência sobre os adversários, transformados em inimigos. O que ela não admite é a traição da confiança pública por parte do sistema judicial ou a covardia de fazer política disfarçado de procurador ou de juiz, ou de polícia. O que ela não aguenta é o espetáculo de julgamentos parciais, de prisões injustas e de adversários políticos tratados como inimigos – do povo, da Nação, de Deus. O que a democracia não suporta é a quebra da sua regra fundamental de convivência: com a minha ação legitimo também a do meu adversário. Agora que todos puderam ver que a Lava Jato não era mais que um grupo de ativistas políticos, como aceitar que tudo o que se passou foi regular, legítimo, enfim, democrático? 

Muitos, em particular os jovens universitários, partiram para a batalha cedo – mas estes, na verdade, nunca acreditaram. Há, no entanto, muitos outros de quem adivinho o estado de estupor  em face do que se passou em apenas oito meses de governo. Sejamos justos com eles, nada disto era o que supunham. Há boas razões para esperar que o discurso do chefe de Estado seja diferente do chefe de partido e é também razoável pensar que o cargo mude os indivíduos, impondo ao dignitário mais reflexão, mais contenção, mais gravitas

Sim, percebo o espanto e a paralisia. Mas não é preciso ser profeta para perceber que  tudo isto deixará um rastro devastador de brutalidade, de baixeza e de mediocridade. Vai ser doloroso olhar para trás. O Brasil acaba de entrar tecnicamente em recessão, o investimento empresarial recua e a  desigualdade social aumenta. Enquanto isso, toda uma “nova” diplomacia copia a beligerância interna e humilha a França, desconsidera a Alemanha e a Noruega (aviso sério: o aquecimento global faz, hoje, parte dos interesses vitais europeus) e termina em grande, chamando de “bandido” ao mais que provável presidente da Argentina. Tudo isto em quê, duas semanas?

Há dias, o ministro Gilmar Mendes classificou este momento como a mais séria crise que a Justiça brasileira enfrentou depois do fim da ditadura. Acho que tem toda a razão. Nada se resolverá sem que as instituições brasileiras ajustem primeiro contas consigo próprias. O Brasil precisará em breve de um tempo de reconciliação e de se elevar acima do ódio e do ressentimento. É preciso, entretanto, reconhecer que a questão premente, o símbolo máximo da violência, da injustiça e do arbítrio institucional é a questão Lula. De Curitiba chegam-nos palavras de quem recusa a liberdade em troca da dignidade. De quem sabe o que representa e a quem se exige que “não escreva o poema da aquiescência”. O Supremo Tribunal poderá copiar a política de apaziguamento seguida pelas democracias europeias com a Alemanha nazi e que Churchill monumentalmente retratou como aquela que consiste em alimentar o crocodilo apenas na esperança de ser o último a ser devorado. Mas o seu tempo chegará, porque está na natureza do escorpião não poupar ninguém. Nenhuma moderação, nenhum diálogo, nenhum campo comum de compromisso social será alcançado sem resolver previamente esta questão e restabelecer o pacto democrático. O problema do Brasil não é a polarização política, mas a violência da prisão política.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo