Henry Bugalho

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Henry Bugalho é curitibano, formado em Filosofia pela UFPR e especialista em Literatura e História. Com um estilo de vida nômade, já morou em Nova York, Buenos Aires, Perúgia, Madri, Lisboa, Manchester e Alicante. Por dois anos, viajou com sua família e cachorrinha pela Europa, morando cada mês numa cidade diferente. Autor de romances, contos, novelas, guias de viagem e um livro de fotografia. Foi editor da Revista SAMIZDAT, que, ao longo de seus 10 anos, revelou grandes talentos literários brasileiros. Desde 2015 apresenta um canal no Youtube, no qual fala de Filosofia, Literatura, Política e assuntos contemporâneos.

Opinião

A década dos sonhos estilhaçados

Estamos de volta à Idade Média, e o nosso pequeno povoado é um celular que nos escraviza com informações ilimitadas

Foto: TeroVesalainen/Creative Commons/Pixabay
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Acabei de assistir a uma retrospectiva desta década que se passou e foi como se tivesse visto o passar de um século.

A primeira sensação foi exatamente essa: de sobrecarga de informações, de estar sufocado por tantas notícias ocorrendo por todo o mundo o tempo todo.

Imaginemos um camponês qualquer durante a Idade Média. Toda a existência dele se daria, tanto física quanto intelectualmente, no interior dos limites de seu povoado. Aquele seria todo o mundo que ele conheceria, e quase nada mais. A instrução livresca era praticamente limitada a uma elite clerical e a informação levava meses, às vezes anos, para chegar de uma região a outra.

Hoje, qualquer pessoa com um celular na mão tem acesso ao mundo inteiro, a qualquer notícia ocorrendo naquele exato instante em qualquer outro lugar do planeta. E nem sequer sabemos o que fazer com isto, por que nos importa ou qual sua serventia. Consumimos um volume monumental de informações simplesmente porque é aquilo que se espera de uma geração que nasce com uma tela diante dos olhos.

Somos os consumidores desta avalanche e, ao mesmo tempo, seus produtores, já que a grande engenhosidade das redes sociais reside no fato de que elas só nos fornecem o espaço para expressão; o resto fazemos nós: nossas interações, nossos contatos, nossas insatisfações, voluntariamente fornecendo a corporações do Vale do Silício todos os dados que precisam para nos socar goela abaixo propagandas e mais propagandas. Somos os consumidores, os produtores, mas também os produtos.

E estas mesmas redes que nos uniram e nos reuniram são aquelas que mais representam um risco às democracias modernas. Falamos das crises e das ameaças às democracias, mas, na base disto, encontramos esta ágora política contemporânea onde todas as paixões são amplificadas pelo poder dos algoritmos, das curtidas e compartilhamentos.

Quando estamos com raiva, ódio ou medo, compartilhamos com maior fervor. E foi este ódio, raiva e medo que serviram de catalizadores para políticos populistas com uma agenda ultraconservadora que, gradualmente, foram conquistando espaço pelo mundo, todos unidos pelo ressentimento e pelo temor ao diferente.

Em dez anos, assistimos ao clamor por liberdade que brotou na chamada “Primavera Árabe”, que chegou a levar à queda de ditadores e regimes autoritários apenas para presenciarmos o fim destes anseios com a ascensão de regimes fundamentalistas, caos social e guerras civis, que culminaram na mais sangrenta delas em nossa época, a da Síria – causando uma desoladora crise migratória que, por sua vez, retroalimentou a retórica xenófoba de partidos europeus de extrema-direita -, e com o horror do Estado Islâmico, a organização terrorista responsável por alguns dos mais brutais atentados em solo europeu deste período e que levou o medo e a brutalidade para povos na fronteira entre Iraque, Síria e Turquia.

Vimos também como estas mesmas redes sociais foram usadas por agentes maliciosos para manipularem e distorcerem eleições pelo mundo, inundando-as com fakes news e robôs que, eventualmente, afetariam a percepção dos usuários e poderiam até afetar o resultado destes pleitos. Trump e Bolsonaro são criaturas destes tempos confusos.

E falando em Brasil, mal dá para imaginar que o mesmo país que chegou a ser mundialmente respeitado na década anterior — retratado em 2009 como um foguete decolando na capa da revista The Economist — entraria num colapso político, social e econômico que levaria ao impeachment da primeira presidente mulher do país e cindiria o país numa corrosiva polarização política que hoje se resume à velha dicotomia de civilização contra a barbárie.

Mais do que um racha partidário ou ideológico, o Brasil de hoje precisa confrontar o perene espectro da brutalidade e do atraso, de um legado de violência estrutural e de sua história de repressão e morte.

Que milhões de brasileiros tenham escolhido pelo segundo, pela linguagem da violência, certos de que representaria algum tipo de avanço, nunca deixa de me espantar.

Chegamos a 2020 sem a menor ideia se, nesta nova estação, encontraremos algumas soluções ou se nos depararemos com problemas ainda maiores e piores.

Dez anos se passaram, mas sinto que retrocedemos cinquenta. A retórica, a ideologia e confrontos que pareciam ter ficado no passado da Guerra Fria estão mais uma vez nas rodas de conversa. Ou voltamos aos anos 20 e 30, presenciando a emergência do fascismo? Ou retornamos ainda mais, para os tempos medievos, quando a população era completamente subjugada intelectual e moralmente pelo obscurantismo religioso?

“Os terraplanistas estão chegando, estão chegando os terraplanistas…”, talvez compusesse Jorge Ben Jor em nossos dias. Sim, estamos de volta à Idade Média, e o nosso pequeno povoado é um celular que nos escraviza com informações ilimitadas que não nos dizem absolutamente nada.

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