Acabei de assistir a uma retrospectiva desta década que se passou e foi como se tivesse visto o passar de um século.
A primeira sensação foi exatamente essa: de sobrecarga de informações, de estar sufocado por tantas notícias ocorrendo por todo o mundo o tempo todo.
Imaginemos um camponês qualquer durante a Idade Média. Toda a existência dele se daria, tanto física quanto intelectualmente, no interior dos limites de seu povoado. Aquele seria todo o mundo que ele conheceria, e quase nada mais. A instrução livresca era praticamente limitada a uma elite clerical e a informação levava meses, às vezes anos, para chegar de uma região a outra.
Hoje, qualquer pessoa com um celular na mão tem acesso ao mundo inteiro, a qualquer notícia ocorrendo naquele exato instante em qualquer outro lugar do planeta. E nem sequer sabemos o que fazer com isto, por que nos importa ou qual sua serventia. Consumimos um volume monumental de informações simplesmente porque é aquilo que se espera de uma geração que nasce com uma tela diante dos olhos.
Somos os consumidores desta avalanche e, ao mesmo tempo, seus produtores, já que a grande engenhosidade das redes sociais reside no fato de que elas só nos fornecem o espaço para expressão; o resto fazemos nós: nossas interações, nossos contatos, nossas insatisfações, voluntariamente fornecendo a corporações do Vale do Silício todos os dados que precisam para nos socar goela abaixo propagandas e mais propagandas. Somos os consumidores, os produtores, mas também os produtos.
E estas mesmas redes que nos uniram e nos reuniram são aquelas que mais representam um risco às democracias modernas. Falamos das crises e das ameaças às democracias, mas, na base disto, encontramos esta ágora política contemporânea onde todas as paixões são amplificadas pelo poder dos algoritmos, das curtidas e compartilhamentos.
Quando estamos com raiva, ódio ou medo, compartilhamos com maior fervor. E foi este ódio, raiva e medo que serviram de catalizadores para políticos populistas com uma agenda ultraconservadora que, gradualmente, foram conquistando espaço pelo mundo, todos unidos pelo ressentimento e pelo temor ao diferente.
Em dez anos, assistimos ao clamor por liberdade que brotou na chamada “Primavera Árabe”, que chegou a levar à queda de ditadores e regimes autoritários apenas para presenciarmos o fim destes anseios com a ascensão de regimes fundamentalistas, caos social e guerras civis, que culminaram na mais sangrenta delas em nossa época, a da Síria – causando uma desoladora crise migratória que, por sua vez, retroalimentou a retórica xenófoba de partidos europeus de extrema-direita -, e com o horror do Estado Islâmico, a organização terrorista responsável por alguns dos mais brutais atentados em solo europeu deste período e que levou o medo e a brutalidade para povos na fronteira entre Iraque, Síria e Turquia.
Vimos também como estas mesmas redes sociais foram usadas por agentes maliciosos para manipularem e distorcerem eleições pelo mundo, inundando-as com fakes news e robôs que, eventualmente, afetariam a percepção dos usuários e poderiam até afetar o resultado destes pleitos. Trump e Bolsonaro são criaturas destes tempos confusos.
E falando em Brasil, mal dá para imaginar que o mesmo país que chegou a ser mundialmente respeitado na década anterior — retratado em 2009 como um foguete decolando na capa da revista The Economist — entraria num colapso político, social e econômico que levaria ao impeachment da primeira presidente mulher do país e cindiria o país numa corrosiva polarização política que hoje se resume à velha dicotomia de civilização contra a barbárie.
Mais do que um racha partidário ou ideológico, o Brasil de hoje precisa confrontar o perene espectro da brutalidade e do atraso, de um legado de violência estrutural e de sua história de repressão e morte.
Que milhões de brasileiros tenham escolhido pelo segundo, pela linguagem da violência, certos de que representaria algum tipo de avanço, nunca deixa de me espantar.
Chegamos a 2020 sem a menor ideia se, nesta nova estação, encontraremos algumas soluções ou se nos depararemos com problemas ainda maiores e piores.
Dez anos se passaram, mas sinto que retrocedemos cinquenta. A retórica, a ideologia e confrontos que pareciam ter ficado no passado da Guerra Fria estão mais uma vez nas rodas de conversa. Ou voltamos aos anos 20 e 30, presenciando a emergência do fascismo? Ou retornamos ainda mais, para os tempos medievos, quando a população era completamente subjugada intelectual e moralmente pelo obscurantismo religioso?
“Os terraplanistas estão chegando, estão chegando os terraplanistas…”, talvez compusesse Jorge Ben Jor em nossos dias. Sim, estamos de volta à Idade Média, e o nosso pequeno povoado é um celular que nos escraviza com informações ilimitadas que não nos dizem absolutamente nada.