Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

A debacle dos militares golpistas

Devemos exorcizar e, ao mesmo tempo, agradecer aos militares por estes anos amargos que ensinam, didaticamente, às novas gerações como os fardados são perigosos no comando da política

Aliados? A simbiose entre extremistas e militares prova a tese de Pimentel, as Forças Armadas foram “bolsonarizadas” - Imagem: Ton Molina/AFP
Apoie Siga-nos no

E de repente, o Brasil acorda com os probos militares, que invocaram o poder de organizar a democracia, enrolados numa trama de desvio de relógios e joias que seu presidente ganhou de presente no cargo. Deparamo-nos também com a ex-líder dos movimentos de rua Carla Zambelli, duas vezes eleita deputada, tornando-se ré no Supremo Tribunal Federal por levantar uma arma contra um cidadão em plena luz do dia.

Vemos servidores bolsonaristas, como o ex-chefe da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, encarcerados por participarem do xadrez golpista. Ficamos sabendo que o atual ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, promete identificar nomes da corporação que tenham cometido irregularidades. 

Devemos exorcizar e, ao mesmo tempo, agradecer aos militares por estes anos amargos? De um lado, é dramático ver uma instituição fundamental ter se colocado nesse papel tacanho de ter parido um governo amoral que levou o país para o esgoto, com cenas constrangedoras até o último dia de Jair no cargo.  Um presidente saindo do Brasil em 30 de dezembro num voo da Força Aérea Brasileira dando ordens aos auxiliares para leiloar um Rolex que a presidência da República ganhou representando o país é digno de comédia pastelão. Seria risível, se não fosse trágico.

Foi o desfecho de um governo que em junho de 2019 mostrou ao mundo a audácia de um militar ao carregar quase 40 quilos de cocaína num voo presidencial.  Foi também num avião da FAB que levava Jair para um encontro no G-20 no Japão, que ocorreu o flagra da droga escondida na aeronave pelo piloto militar, sargento Manoel Rodrigues. 

Por outro lado, a falta de caráter desses militares ensina, didaticamente, às novas gerações, a serventia dos fardados na política: zero. Já há sinais claros de que a idoneidade da instituição é questionada pela população. Uma pesquisa da Quaest desta segunda-feira, 21, mostrou que o respeito pelos militares está em queda desde o começo do ano. O total de entrevistados que diziam confiar nos fardados passou de 43% em dezembro para 33% neste mês. E entre os que confiam pouco ou não confiam, o número passou de 54% para 64%. 

De repente, o país parou de ter um porta-voz do negacionismo que torturava o bom senso diariamente, provocando confusões gratuitas para seguir seu plano de se beneficiar com pequenas benesses. Passamos a vislumbrar um caminho para sair da barbárie em que o país entrou nos últimos anos. Estamos diante da possibilidade de que militares sejam punidos pelos seus crimes depois de os generais quebrarem sua redoma de vidro da integridade. 

A guerra de forças não está ganha, nem nunca estará, num país forjado pelo militarismo desde a fundação da República. As feridas são muito profundas no Brasil desigual e transcendem a política. Ainda ouvimos médicos negacionistas pregar contra as vacinas, insinuando até que os recentes problemas de saúde do apresentador Fausto Silva são derivados de sua vacinação contra a covid-19. “Hoje um paciente chega no consultório e pergunta se eu me vacinei para saber de que lado eu estou”, conta o angiologista Antonio Carlos de Souza, de Brasília. Souza e outros colegas médicos acabam de vencer a eleição do Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF) com o mote Ciência, Ética e Dignidade.“Esse tripé foi ferido durante a pandemia da covid-19”, diz ele, que é professor universitário, e jamais havia imaginado se envolver em um projeto dessa natureza. “É por responsabilidade social”, explica.

É a reação da sociedade aos demônios que ainda estão nas ruas. E são muitos, em todas as instâncias. Na violência gratuita que se instaurou entre os proprietários de armas, imitadores de Carla Zambelli. Com uma parte da polícia degenerada que desce aos porões infernais em sessões de tortura e extermínio de inocentes em verdadeiras chacinas em nome da segurança pública. Com o desmatamento que saiu da Amazônia e foi para o Cerrado, com o assassinato da líder quilombola Mãe Bernardete, na Bahia. 

Ao menos, podemos voltar a nos indignar sem um eco maledicente no Palácio do Planalto. Passamos a ter escuta do outro lado, como nunca antes. “Assumo a responsabilidade, em nome do Estado brasileiro”, disse o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, sobre a execução de Mãe Bernadete. 

Vislumbramos o limite do fundo do poço. Voltamos a debater o coletivo com mais propriedade, para resgatar dos escombros a dignidade que nos foi roubada. O caminho é longo, muito longo. Mas, um passo de cada vez. Por ora, vamos assistir aos militares tombarem diante da própria desfaçatez.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo