

Opinião
A Dayse do Almoxarifado e a viagem de ônibus que virou crônica
Achei que a palavra almoxarifado tinha sumido do mapa da juventude, sendo substituída por estoque. Mas não


Eram seis. A turma subiu animada no ônibus Vila Anastácio, quase em frente ao Oba Hortifruti, na Avenida Angélica. Em princípio, achei que eram estudantes sextando, voltando pra casa depois de uma semana de faculdade. Mas não.
Pelo papo alegre, logo percebi que a idade, entre 24 e 27 anos, não batia muito com a idade de estudantes. Fiquei logo sabendo o nome de cada um: Maria Eduarda, a Duda, Gisela, a Gi, a Vitória, o Mateus, o Fabio e o Du, provavelmente Eduardo.
A primeira frase que ouvi foi: “Então segunda a gente pergunta pra Dayse do Almoxarifado”. Achei que a palavra almoxarifado tinha sumido do mapa da juventude, sendo substituída por estoque. Mas não.
Eles conversavam sem parar e as palavras se misturavam em línguas como que de fogo. Eles estavam felizes e comentavam o dia que estava acabando:
– Meu, e aquela cliente da Duda que chegou com a tela toda detonada querendo trocar, de graça!
E o véio que o Fabio atendeu teimando que estava na garantia, mas não tinha nem a nota fiscal. E aí, Fabio?
– Sei lá, cara!
Comecei a desconfiar que trabalhavam em alguma loja de conserto de celulares, computadores, coisa assim. Tipo estagiários, provavelmente.
Tudo virava assunto para aquela turma que se equilibrava de pé no ônibus Vila Anastácio, com as mochilas no chão, apesar de uns quatro lugares vazios.
Uma picape preta com o som estridente parou bem ao lado do ônibus esperando o sinal abrir e mereceu um comentário da Gi.
– Essa música é da hora!
Gi começou a se balançar, simulando uma dança qualquer. Ninguém deu muita bola e o assunto voltou ao trabalho.
– Aquele com capa rosa? É maior caro, meu!
– Mas é o que mais vende.
– Já vendi três, disse Mateus.
Inquietos, eles se balançavam pisando bem na junção da sanfona do ônibus, achando graça quando um quase caia, rindo de tudo.
– De repente, a gente podia rangar lá em casa. Tem bacon na geladeira e um pacote de macarrão, disse Fabio.
– Tem molho?
– Não. A gente passa no Dia e compra.
– E queijo ralado?
– Ah, cara, aí tá querendo demais.
Quando entramos na Rua Guaicurus, houve um grande zunzunzun.
– Vamos descer onde?
– Antes da Estação Ciência, depois ele só para pra lá do Mercado.
– Ele não para na Estação Ciência?
– O Vila Anastácio, não.
No segundo ponto da Guaicurus, um vendedor entrou pela porta do fundo, depois de acenar pro motorista, que deu o ok. Ele trazia nas mãos dois pacotes de Mentos de frutas. Se escorou na catraca e fez um pequeno discurso:
– Boa noite a todos! Estou sem trabalho há dois anos e vendo essas balas pra sobreviver. Quem puder me ajudar com dois reais, leva uma caixinha. Deus abençoe a todos.
Os três primeiros passageiros abordados não quiseram comprar, um virou a cara e dois fizeram sinal negativo com o dedo. Foi caminhando entre os passageiros até que chegou na sanfona do ônibus onde estava a turma. Eles começaram a catar as moedas nos bolsos e nas mochilas. Era preciso inteirar dois reais aqui, dois ali. Todos queriam Mentos.
Três compraram, o que deixou o vendedor feliz e mais falante: Muito obrigado! Deus lhe pague! Obrigado! Obrigado! Valeu!
– Vocês são estudantes? Perguntou o vendedor.
– A gente trabalha na Claro! Saiu quase em coro.
Quase chegando, fiquei sabendo onde a Gi, a Duda, o Mateus, o Fabio, o Du e a Vitória trabalhavam. Desci um ponto antes deles, que seguiram Guaicurus afora.
Fui caminhando pra casa pensando que essa viagem daria uma crônica, e me perguntando:
O que será que eles vão perguntar pra Dayse do Almoxarifado, na segunda-feira, quando chegarem na Claro?
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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