Justiça

A conjuntura brasileira em uma anedota sobre Olavo de Carvalho

Aquele jovem que fazia “bico” como jornalista hoje faz “bico” como filósofo político…

Olavo de Carvalho. Foto: Reprodução
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O ambiente é suntuoso, mas os personagens se esforçam para amenizá-lo, de modo a torná-lo tão informal e amigável quanto seja possível. Apenas uma escrivaninha e algumas décadas separam os dois homens, e a esposa do mais velho faz as vezes de anfitriã, servindo café e empadinhas. Ela pergunta se eles precisam de algo mais e, diante da negativa, sai de cena, abrindo espaço para o diálogo.

Nosso protagonista, um senhor de cabelos grisalhos impecavelmente arrumados, põe-se a dividir com seu interlocutor as histórias colecionadas durante o curso de toda uma vida. Entre um cigarro e outro, intervalados por golinhos de café, ele narra, com voz grave e dicção ruinosa, a anedota que me levou a escrever estas poucas linhas.  

Ela se passa em 1968, ano geralmente lembrado pelo assassinato de Martin Luther King Jr., e pelo “realismo” dos estudantes franceses, que, àquela época, “exigiam o impossível”. No Brasil, a ditadura civil-militar já completava quatro anos e, em dezembro, instauraria o abominável Ato Institucional Número Cinco (AI-5).

Naqueles dias, a cabeleira não ostentava nem um fio branco e as histórias, correspondentes à falta de experiência, não passavam de trivialidades. Na necessidade de garantir o próprio sustento, ele arrumara um “bico” como entrevistador no jornal Notícias Populares (NP). Para os nascidos no século XXI, este nome é tão familiar quanto os Tigres Asiáticos, mas, em síntese, tratava-se de um jornal abertamente sensacionalista, associado ao Grupo Folha, e que, entre uma piada tosca e outra mais ainda, emitia um consenso: “espreme que sai sangue”.

Aproveitando-se da inexigibilidade de diploma universitário, o rapaz trabalhava no jornal desde os dezessete anos, cumprindo a função de entrevistar prostitutas e delegados de polícia.

Foi então que, em 1968, quando já havia completado vinte e um anos, o chefe da redação mandou chamá-lo para uma difícil missão: entrevistar Roberto Carlos, o Rei.

Ele não se fez de rogado e saiu em busca do cantor de fama nacional. Bateu de porta em porta, foi à gravadora e chegou a ir ao domicílio do astro, mas não conseguiu encontrá-lo.

De volta à sala do chefe, revelou seu fracasso num tom apropriado ao seu local de trabalho – “fodeu, não achei o homem” –, mas ele não perdia por esperar. Jean Melle era um sujeito experiente nesse ramo e se adequava perfeitamente à função para a qual havia sido designado. Before it was cool, ele ensinou ao jovem que a ausência de notícia pode ser, ela mesma, uma notícia. Sem pestanejar, ordenou a seguinte manchete de capa: “DESAPARECEU ROBERTO CARLOS”.

É evidente que a reação do cantor não foi em nada amistosa, chegando a ligar para a redação para saber quem era o responsável por aquela molecagem. Após acalmar os ânimos do Rei, Melle desliga o telefone e, de pronto, ordena uma nova manchete: “APARECEU ROBERTO CARLOS”. Veja-se que o mesmo golpe funciona, sim, duas vezes.

Este pasquim de décima-nona categoria se perpetuou por toda a ditadura e por parte significativa da redemocratização interrompida, imprimindo “notícias” deste nível e se autodeclarando, despudoradamente, como o jornal do trabalhador. Aquele jovem que fazia “bico” como jornalista hoje faz “bico” como filósofo político… seu nome é Olavo de Carvalho.

Décadas se passaram e, aparentemente, pouco ou nada aprendemos. Rimos dos tolos e não tratamos com seriedade o que estava diante de nossos olhos. Notícias Populares retorna, hoje, como a metáfora mais bem-acabada para a atual conjuntura política brasileira, em que os fantasmas do passado votam a nos assombrar ao som de aplausos e trompas nefastas. De fato, subestimamos o potencial unificador do ódio.

A vulgaridade e o irracionalismo puseram de joelhos a verdade e a democracia; as mentiras de outrora reaparecem como as fake news do dia a dia; o Palácio do Planalto opera como se fosse aquela redação, mas agora via twitter; as trapalhadas que o governo insiste em chamar de “projetos”, aparecem como manchetes sensacionalistas: frases de efeito sem qualquer fundamentação racional, que torcemos para que sejam piadas. O inimigo imaginário – o “marxismo cultural” ou qualquer outra sandice – “desaparece” e “aparece” com base na necessidade de apoio e legitimação.

Quanto à trilha sonora, a história oferece uma ironia final. A mesma letra cantada hipocritamente por Roberto Carlos, quando “celebrava” a redemocratização, é perfeita para o cenário atual:

É a camisa que eu visto

Verde e amarelo (coro)

Azul e branco também

Verde e amarelo (coro)

É Brasil, é brasuca

Verde e amarelo (coro)

Boto fé, não me iludo

Nessa estrada ponho pé, vou com tudo.

É, meus amigos… cada momento histórico exibe o “rei” e o “filósofo” mais compatíveis, mas ainda é tempo de pôr fim à barbárie. Quanto ao “bobo da corte”, sem comentários.


Referências:

O “filósofo” conta a sua própria história (logo nos primeiros quinze minutos): ?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> style="font-weight: 400;">

O “rei” canta a nossa desgraça:

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