Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

A ciência e a conveniência 

No fim do dia, o lema continua sendo: eu defendo a ciência, contanto que isso não abale minhas crenças 

Foto: Governo de SP
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Em 2018, a pesquisadora Emily Pechar e seus colegas Thomas Bernauer e Frederick Mayer publicaram um estudo no conceituado periódico científico Science Communication. O título original do artigo é Beyond Political Ideology: The Impact of Atitudes Towards Government and Corporations on Trust in Science. Em tradução livre, algo como “Para Além da Ideologia Política: O Impacto de Atitudes em relação a Governos e Corporações na Confiança na Ciência”. 

De forma bastante resumida, o trio de pesquisadores busca testar uma hipótese ainda bastante corrente acerca de como a posição de indivíduos no espectro político-ideológico estaria associado a um maior alinhamento ou desalinhamento com as evidências e os consensos da comunidade científica.

Em outras palavras, alguém mais à direita tenderia a se opor mais à ciência do que alguém mais à esquerda? 

Os últimos anos de hegemonia da extrema-direita em importantes Estados nacionais e, principalmente, na comunicação difusa em redes e plataformas digitais, certamente levou e ainda leva muitos a acreditar que estar mais à direita corresponderia a maior disposição ao negacionismo científico. Ledo engano. A posição no espectro político-ideológico não é determinante para que os sujeitos se oponham ou se alinhem aos consensos científicos e sim de qual tipo de ciência estamos falando e quais atitudes esses sujeitos sustentam, como convicção ideológica, face a governos e a corporações. 

Primeiro a ciência. O apoio ou a resistência e oposição à ciência não é absoluto. Depende de que questão científica se trata. No estudo em questão, evidencia-se que um mesmo indivíduo pode se alinhar às evidências científicas acerca da existência das mudanças climáticas e da antropogenia por trás desse fenômeno, mas se opor frontalmente ao expressivo consenso científico e acúmulo de evidências acerca da segurança da ingestão de alimentos geneticamente modificados para a saúde humana. O contrário também é verdadeiro. 

Isto porque alguém mais à esquerda tenderá a sustentar uma preocupação mais acentuada com questões ambientais e cultivará simpatia com intervenções do Estado que visem ingerências sobre o mercado tendo em vista a redução da emissão de poluentes. Mas diante dos alimentos transgênicos, a coisa mudará de figura. Aí a ciência deverá ser contestada. Alguém à direita fará exatamente o oposto. E por quê? 

Por conta, justamente, das atitudes frente a governos e a corporações. Alguém à direita abraçará o consenso científico sobre a segurança dos alimentos geneticamente modificados porque isso dá força e tração ao mercado, mas rejeitará a ciência das mudanças climáticas porque isso tende a fazer com que governos regulem a iniciativa privada de corporações. À esquerda, verifica-se o apoio à ação governamental de moderação da livre iniciativa de empresas na questão das mudanças climáticas e a tendência à oposição à ciência dos transgênicos porque, daí, questões identitárias caras a esses grupos são desafiadas pelas evidências científicas. Em geral, se hay Monsanto, soy contra. 

A posição no espectro político-ideológico não é determinante para que os sujeitos se oponham ou se alinhem aos consensos científicos

O que temos, então, é uma questão com contornos de banalidade: a ciência, em geral, é marginal. Nunca esteve e dificilmente estará à frente dos sistemas de crenças particulares, grupais e identitários à esquerda e à direita. Religião, superstição, opinião, tradição sempre tenderão a se sobrepor ao que a ciência pode trazer de melhor em matéria de evidências. Cabe, nesse ponto, não batalhar contra as crenças alheias, mas garantir que ao menos as políticas públicas sejam orientadas pela racionalidade científica. 

E esse é o grande desafio. É fato que a defesa da ciência é uma defesa conveniente e circunstancial. Alguém pode militar ferrenhamente contra o uso da ivermectina para tratar Covid-19 porque assim orientam as melhores evidências científicas disponíveis, mas ai de quem questione sua adorada homeopatia, acupuntura e aromoterapia. Aí a ciência é relativa e existem muitas “epistemologias” que a suposta ciência ocidental (também colonial?) não alcança. 

O assustador nesse aspecto é ter de lidar com um país em que um Conselho Federal de Medicina recomendou a hidroxicloroquina e a ivermectina na pandemia e governos petistas resolveram oferecer pelo SUS – ou seja, com dispêndios públicos – supostas terapias que não possuem evidências científicas de sua eficácia. Bem, se as evidências científicas não são o critério determinante para o Estado incorporar tratamentos em seu sistema público de saúde, o que impede que a corrente dos 50 pastores de alguma igreja pentecostal também não seja oferecido pelo Estado? Tem muita gente que jura ter se curado de coisas como o câncer e até mesmo da AIDS como há quem jure que a homeopatia curou dezenas de moléstias suas e de seus familiares. 

Muitos aplaudiram e agradeceram ao trabalho fundamental de defesa da ciência que Natalia Pasternak fez durante a pandemia quando era a extrema-direita quem patrocinava a anticiência, as pseudociências e o negacionismo científico. Enfim, chegou a hora de apanhar do outro lado. Nenhuma surpresa, afinal, a negação da ciência não respeita cor, credo, classe social, muito menos posições ideológicas à esquerda e à direita. O consenso da anticiência é maior do que os consensos científicos e, no fim do dia, o lema continua sendo: eu defendo a ciência, contanto que isso não abale minhas crenças. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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