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A beleza do acaso

No futebol há sorte e azar e o absurdo também acontece, como é próprio do jogo

A beleza do acaso
A beleza do acaso
Foto: Odd ANDERSEN / AFP
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Eu gosto de futebol porque é um jogo. A interminável conversa “científica” sobre tática e organização das equipes quase nos faz esquecer esta verdade simples de que o futebol é um jogo. E, sendo um jogo, está sujeito às leis selvagens do aleatório e do imprevisto. Toda a beleza reside no resultado em aberto. Ninguém iria a um estádio se soubesse antecipadamente o que se iria passar ou se pudesse garantir quem ganha. A emoção está ligada ao indefinido e ao contingente – a emoção é a incerteza. Bem-vistas as coisas, os que levam feiticeiros e videntes e padres para os estádios são os únicos a compreender que nisto de jogos, quando são verdadeiramente jogos, nenhuma ciência determina o resultado e só o recurso à metafísica pode ajudar os espíritos.

A propósito, não sei se viram os últimos instantes do Portugal e Gana, mas foi uma cena linda. O goleiro pôs a bola na marca para fazer o pontapé de meta e recuou uns passos, como se faz habitualmente. De repente, de trás, de onde ninguém esperava perigo, apareceu um atacante ganês que tirou a bola ao aflito goleiro e se preparava para rematar para a baliza desguarnecida que estava mesmo à sua frente. Nesse momento, escorregou. Quando finalmente tentou rematar, a defesa portuguesa estava no caminho. Dizem os comentaristas que aquilo não poderia acontecer, que o goleiro deveria ter verificado, que foi um erro, que foi sabe-se lá o quê. Bom, o goleiro é um dos grandes jogadores desta equipe e o que sucedeu foi um acaso, um desses acontecimentos fortuitos que acontecem raramente e de forma absolutamente inesperada. A quem ocorreria verificar, nos últimos segundos do jogo, se algum jogador ganês teria ficado perdido lá atrás da baliza portuguesa?

O que aconteceu nos lembrou que no futebol há sorte e azar e que o absurdo também acontece, como é próprio do jogo. “Deixai vir a mim o acaso. É inocente como uma criança”, dizia Nietzsche. Pela minha parte também não gosto daqueles que acham que com um pouco mais de “saber técnico”, com um pouco mais de “tática”, com um pouco mais de “organização”, podemos acabar com a indeterminação do futebol. Já tivemos a ideia de que o “socialismo científico” construiria a sociedade perfeita, de que o “saber técnico” poderia governar e substituir o juízo social inerente às escolhas políticas. Talvez seja altura de parar com essas experiências. Devolvamos o futebol àquilo que ele efetivamente é, um jogo. E por ser um jogo tem imprevistos, está sujeito à contingência, acontecem coisas que parecem absurdas. Por ser um jogo traz com ele o acaso. “Deixai vir a mim o acaso.”

E depois há a beleza e o estilo. Tanta tática e tanta técnica parecem também querer diminuir o sentido estético do jogo. E, sim, há um sentido estético num jogo que se passa num campo muito grande e com muitos jogadores. Pela minha parte sei disso perfeitamente, porque comecei a gostar de futebol em 1974, com a equipe da Holanda, com a “Laranja Mecânica”, que nada tinha de mecânica porque tudo ali parecia espontâneo e natural. Nada parecia programado. Nessa altura, salvo erro, surgiu o conceito de futebol total – todos defendiam e todos atacavam. Era uma novidade. E há sempre qualquer coisa de especial, de absolutamente singular, quando ouvimos um acorde pela primeira vez. E depois havia Cruyff. Sem Cruyff aquela equipe não seria o que foi. Cruyff comandava. Cruyff corria. Corria com elegância, sempre com o olhar levantado e a bola controlada. Quando ouço um brasileiro falar do jeito do Garrincha, compreendo muito bem o que quer dizer. O meu preferido era aquele jeito elegante do Cruyff, alto, meio louro, meio cabelos compridos. E depois a pose, a pose de quem conduz a bola ao mesmo tempo que olha para todo o campo, dominando todo o espaço e os jogadores dentro dele. Compreendem? Julgo que compreendem. Bom, a tática é importante, eu sei, mas o verdadeiramente extraordinário neste jogo é a beleza na execução.

Finalmente, pude ver também o espetáculo magnífico de duas japonesas, no fim do jogo, aplaudindo delicadamente a equipe que ganhara. Aplaudiram a sua equipe, o Japão, e depois, no fim do jogo, aplaudiram o adversário que venceu, a Costa Rica. Dei comigo a pensar quantas gerações são necessárias para que esses gestos, aparentemente tão simples e raros, façam parte da cultura cívica dos povos.  Quantos anos mais vai o Brasil passar até que os candidatos presidenciais compreendam que saudar o adversário que ganhou a eleição não é um mero ritual que possamos pôr de lado num momento de ressentimento. Saudar o adversário que ganhou é algo que demora muito a construir e pouco, muito pouco, a desmoronar. Pela minha parte, e para regressar ao início, eu gosto de futebol porque é um jogo, feito de acasos, de absurdos, de beleza, e porque, de vez em quando, é também capaz de nos oferecer a contemplação de gestos tão nobres que nos fazem lembrar o melhor da humanidade que vive dentro de nós. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A beleza do acaso”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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