Sidarta Ribeiro

Professor titular de neurociência, um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN

Opinião

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A banalidade do bem

Vamos precisar de uma purga mental fortíssima para nos livrarmos do mal e do festival de besteiras que assola o País

A banalidade do bem
A banalidade do bem
Para Sidarta Ribeiro, a medicina do século 20 falhou em reconhecer o potencial das drogas psicodélicas (Foto: Luiza Mugnol Ugarte)
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A capoeira ensina que escorregar não é cair, é um jeito que o corpo dá. O povo brasileiro decidiu-se contra uma imensa pulsão de morte que, por pouco, não nos leva, moço, sem ter visto a vida… O tamanho da celebração que merecemos só não é maior do que o tamanho do trabalho que temos pela frente, para reconstruir as pessoas, as relações e as instituições.

Há sete anos o Brasil foi derrubado de propósito, abalroado por uma legião de interesses escusos unidos para sangrar a democracia. Escorregamos na ladeira, despencamos da ribanceira e caímos num poço imundo, quase sem fundo, habitado por mortos-vivos poupados pelos nem tão vivos democratas de 1985. A propósito, o excelente filme Argentina, 1985, de Santiago Mitre, mostra que a destruição do mal exige a banalidade do bem.

Para vencer o mal são necessários funcionários singelamente burocráticos, que não tergiversem nem prevariquem diante do crime. Servidores públicos tão somente dispostos a cumprir o seu papel, simplesmente. Qualquer semelhança entre Alexandre de Moraes e o promotor argentino Julio Strassera, que conseguiu colocar na cadeia os psicopatas que encabeçaram a ditadura militar argentina, é pura esperança de justiça.

As eleições mostraram que as nossas instituições, apesar de todas as deformações que sofreram desde o golpe de 2016, ainda funcionam bem, o suficiente para impedir que Bolsonaro fraudasse ou melasse o jogo por completo.

Nunca, desde a redemocratização, a máquina pública e as milícias privadas foram usadas de forma tão ostensiva para corromper o processo democrático. Mas a história mostrou que não nos havíamos perdido completamente de nós mesmos. O TSE, as organizações da sociedade civil, a imprensa e as pessoas sensatas cumpriram o seu papel.

Ironias abundam. A tentativa bozoísta de seduzir a população com 600 reais por mês na reta final da campanha, sem nem fingir lastro no orçamento, desembocou na imagem do Centrão negociando com a equipe de transição o que pode vir a ser o embrião da renda básica universal. E como defendeu em campanha o presidente eleito, antídoto para orçamento secreto é orçamento participativo pela internet.

Contradições dialéticas abundam. A Polícia Rodoviária Federal inaugurou o diálogo respeitoso e paciente como novo patamar civilizatório para tratar com manifestantes indígenas, quilombolas, favelados e professores. Que durante o novo governo as forças policiais se curem da doença de torturar e matar gente preta, parda e pobre, para se tornarem o que precisam ser: forças de promoção da paz.

Vencemos as eleições, mas não podemos nos esquecer de que o fascismo hipnotizou quase metade dos votantes. A vitória não pode nos desmobilizar. Precisamos ampliar os canais de comunicação que utilizamos para a resistência e enfrentamento do fascismo, construindo pontes e ampliando o diálogo em todas as direções.

Ambiente, Cultura, Ciência, Educação e Saúde não podem ser pautas apenas da esquerda, pois são os mais importantes temas nacionais. Lula, ­Alckmin, Marina, Simone Tebet, Haddad, Sônia ­Guajajara, Janja e tantas outras dezenas de milhões de pessoas, de ­Eduardo ­Suplicy a ­Henrique Meirelles, de Neca Setubal a Joênia Wapichana, de ­Guilherme ­Boulos a Luiza Trajano, temos interesse nessas pautas, que são a verdadeira solução para os nossos problemas.

É preciso também lembrar que mesmo as pessoas que hoje se dizem contra essas pautas têm interesse implícito nelas. Apenas não percebem isso com nitidez, envoltas nas brumas de Babel das mentiras digitais.

Vamos precisar de uma purga mental fortíssima para nos livrarmos do festival de besteiras que assola o País. Como escreveu recentemente no jornal Sumaúma a jornalista e escritora Eliane Brum, precisamos lidar com o adoecimento mental de milhares de pessoas que se descolaram da realidade e não dão sinais de desejar regressar do delírio.

Por fim, precisamos, neste momento, agradecer, confiar, ajudar e cobrar o nosso velho mandingueiro, nosso guerreiro do amor, corajoso e sagaz, convocado a esta enorme batalha mesmo depois de tanta luta, porque ninguém além dele conseguiria deter o fascismo.

Entrou na roda e gingou bonito, negaceou, encarou o terror, mostrou seu valor e, afinal, venceu a parada. Viva o povo brasileiro, que se fez representar. Que o presidente eleito continue são e salvo, e pleno, bondoso e ameno nas compassivas palavras de Krishna, Cristo e ­Obatalá. Agora é Lula, mamãe. Lula lá! •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A banalidade do bem”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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