Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

A Argentina de Milei se parece e se diferencia do Brasil 

Comparações com as eleições do país vizinho fazem sentido até a disputa eleitoral. O extremista não cabe numa sociedade onde a educação é um valor que se sobrepõe a suas crises

Javier Milei e Sergio Massa, candidatos à Presidência da Argentina. Fotos: Juan Mabromata e Luis Robayo/AFP
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A Argentina tem provocado inúmeros déjà vu entre os brasileiros atentos ao processo eleitoral no país vizinho. O candidato do peronismo, Sergio Massa, que saiu em vantagem com 36,55% dos votos no primeiro turno, contra 30,05% do anárquico Javier Milei, está longe de cantar vitória. Além de vir de um governo impopular, como ministro da economia do presidente Alberto Fernández, Massa sabe que não está lutando contra um oponente qualquer. É uma luta contra o populismo de extrema-direita que tem varrido o mundo na última década. A disputa pelo segundo turno, que acontece no dia 19 de novembro, é seguida no mundo inteiro, uma vez que pode representar o avanço do radicalismo conservador no tabuleiro político da América Latina.

A priori, estas são as eleições mais desafiadoras desde a redemocratização de 1983, quando o regime militar argentino chegou ao fim. Desafiadora e decisiva por colocar o país num flerte com o abismo do desconhecido, através de Javier Milei, assim como aconteceu no Brasil em 2018. 

O economista, um outsider da política que encantou os jovens pelas redes sociais com seu deboche pelo status quo, e suas bravatas, personificou o hartazo dos argentinos diante da eterna crise econômica. A palavra traduz um sentimento de esgotamento emocional, de exaustão, no caso, com a inflação galopante que alcança 140% ao ano atualmente.

É como se o Brasil nunca tivesse vivido um Plano Real em 1994, e nós seguíssemos, nestes quase trinta anos, com nossos freezers em casa correndo para o supermercado tentando fugir das máquinas remarcadoras de preço, para estender o valor do salário. Quem tem mais de 40 anos se lembra bem, até do som angustiante da maquininha que iria corrigir o preço para cima dos produtos na prateleira, enquanto sentia-se a impotência de ter um salário que perdia seu poder de compra. 

Essa é a angústia que corrói os argentinos há décadas, sem vislumbrar um futuro em que se pode planejar o pagamento das contas até o final do mês. O peso perde valor diariamente e ninguém enxerga o fundo do poço.

E é aí que entra Milei, capitalizando esse sentimento de frustração e cansaço, o tal hartazo, oferecendo soluções simples para assuntos complexos. Ele repete a cantilena dos populistas radicais de direita, disfarçada de liberdade de expressão, ou de excentricidades. Sua sanha por trazer assuntos polêmicos para a campanha política, como o revisionismo da ditadura — proposto pela sua vice, Victoria Villarruel —, o fim do Banco Central, e seu desprezo pela esquerda, fazem dele um personagem familiar para o Brasil. 

Há outras similitudes no processo da Argentina e que também vivemos no Brasil. Uma delas é o jogo de alianças da direita ou centro-direita tradicional com esses populistas radicais, tal qual aconteceu aqui. A candidata derrotada no primeiro turno, Patricia Bullrich, da coligação Juntos por el Cambio, e que obteve 23,83% dos votos, anunciou apoio a Milei logo na sequência do resultado do primeiro turno, em 22 de outubro. Bullrich é do partido PRO, do ex-presidente Mauricio Macri, que governou o país entre 2015 e 2019. 

O PRO é uma das cinco legendas que integram a coalizão Juntos por el Cambio, e fechou acordo com Milei sem consultar os demais partidos da aliança que nasceu em 2015, ainda sob o nome de Cambiemos, para derrotar o kirchnerismo. “Estão cometendo um erro histórico”, disse Elisa Carrió, fundadora do partido Coalición Cívica, que integra o Juntos por el Cambio e acusa Mauricio Macri de querer implodir a aliança que ajudou a elegê-lo há 8 anos.

O historiador argentino Federico Finchelstein entende que a Argentina hoje segue os mesmos passos vistos em outros países que elegeram candidatos com o discurso da disrupção. Mais do que isso. Devora a política tradicional sob o canto do cisne de que será comedida. “A extrema-direita fagocita a direita tradicional. É um mundo de intolerância, que vimos nos Estados Unidos e no Brasil, e que acabou com tentativas de golpe de Estado (6 de janeiro de 2020 nos Estados Unidos e 8 de Janeiro deste ano em Brasília)”, diz Finchelstein, autor de diversos livros sobre o fascismo do século 21. 

O apoio do PRO a Milei, e o bode na sala de Juntos por el Cambio, lembra o embate entre os “cabeças pretas” e os “cabeças brancas” do PSDB, que dividiram o partido desde as negociações para apoiar o impeachment de Dilma Rousseff. De um lado, os tucanos mais jovens e ambiciosos, do outro, os mais velhos e previdentes.

Os cabeças pretas venceram a disputa e o PSDB acabou como linha auxiliar da ascensão de Jair B. Mas, passado o furacão do bolsonarismo no poder, os tucanos perderam a majestade de outrora, símbolo de uma política responsável e estruturante, como foi ao patrocinar o Plano Real. João Dória foi um dos que personificou esse apoio inicial, e hoje reconhece o erro que cometeu.

Existiria um Milei vitaminado se Jair B. não tivesse sido eleito em 2018? Não sabemos. Assim como não dá para prever o que ocorrerá nas próximas três semanas de campanha na Argentina. Os eleitores de Massa torcem para que o ‘espólio’ de votos dos demais concorrentes migre para o peronista como um voto de confiança no “mal menor”. É uma encruzilhada que lembra a eleição de 2022 no Brasil. Lula venceu a eleição por causa de seus leais eleitores, mas teve a participação decisiva de quem votou nele, mesmo sem gostar do PT, para evitar que o bolsonarismo continuasse a fazer estragos.

Hoje a Argentina respira um ambiente de resignação, com pouco espaço para grandes apostas. Mas pelo andar da carruagem, ouso dizer que, nesta reta final, Milei não terá vida fácil. Suas frases de efeito e a tensão criada por suas propostas extremas, como a privatização a todo custo com corte de gastos públicos, não passa da página 15 na cartilha dos argentinos. E é neste ponto que a Argentina deixa de se parecer com o Brasil.

Mesmo há décadas afundada na crise, o país mantém um padrão de dignidade alto. O Índice de Desenvolvimento Humano — que engloba indicadores de longevidade da população, educação e renda per capita — dos hermanos está muito acima do Brasil: 0,842 no país vizinho, 0,754 aqui. No ranking de 2022 das Organizações das Nações Unidas, a Argentina ocupa um honroso 47° lugar, enquanto o Brasil está em 87°.

Isso quer dizer que a expectativa de vida dos argentinos é maior do que a nossa, que os jovens têm mais anos de escolaridade e, em tese, mais anticorpos para desventuras. Ainda que Milei venha a ser vitorioso, fica claro que a população não lhe dará trégua, e pode descartá-lo com a mesma velocidade que lhe deu fama. Seguimos atentos aos próximos passos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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