Joanna Burigo

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É fundadora da Casa da Mãe Joanna e mestre em Gênero, Mídia e Cultura.

Opinião

50 anos de Stonewall: minha terra tem palmeiras onde dubla a drag queen

28 de junho celebra os 50 anos de Stonewall e aproveitamos para contar mais sobre a história do drag no Brasil

(Foto: Reprodução Instagram)
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Hoje há 50 anos se dava o que ficou conhecido como Stonewall, uma sucessão de motins contra a brutalidade e violência policial na direção de pessoas LGBT+ ocorrida nos arredores do bar Stonewall Inn, no Village em NY. Considerado um dos eventos mais importantes na direção da organização de movimentos modernos LGBT+, essa é uma história que merece ser contada através dos tempos. Ela também evoca outras histórias de outros espaços, que também merecem ser contadas através dos tempos. E foi para contar um pouco da história do drag no Brasil que convidei Abigail Foster* – drag queen do meu amigo Gengiscan Pereira, pesquisador da cena – para esse all T no shade sobre drag brasilis. Te diverte, henny.

***

Desde que o teatro é teatro ele faz os atores se transformarem. É sabido, como se pode ver em filmes sobre Shakespeare, da proibição de mulheres nos palcos em muitas épocas, fazendo com que homens acabassem por interpretar personagens femininas. E homem interpretando mulher, bem: é drag.

A história e as histórias da arte drag no mundo têm ficado cada vez mais conhecidas, e ainda bem. Eu mesma sou pesquisadoríssima publicada, e muito boazinha – tanto que aceitei esse convite para contar um pouco sobre isso pra vocês. E, é claro, escolhi jogar a luz no palco das divas brasileiras, que estão há a-nos suando a peruca com pouquíssimo reconhecimento.

Nessa terra de palmeiras onde cantam sabiás, travestis levantam suas vozes e tombam gente brega e preconceituosa. O início de manifestações de transformismo por aqui veio de famosos atores. Oscarito, Chico Anysio e Grande Otelo interpretavam mulheres, via de regra de forma cômica, em filmes, na televisão e em peças de teatro.

Começamos a falar especificamente em atores transformistas com as Divinas Divas, lá na década de 60. Bem quando a Ditadura Militar mostrava as garrinhas, esse grupo composto por Rogéria, Valéria, Jane di Castro, Camille K., Fujica de Holliday, Eloína, Marquesa e Brigitte de Búzio, fazia shows de música, performance, dança e variedades no Teatro Rival, no Rio de Janeiro.

Ao passo que as Divinas abrilhantavam a noite carioca, em São Paulo é mandatório que se fale sobre a maravilhosa Miss Biá, uma drag com 60 anos – de carreira, 80 é a idade e, detalhe: na ativa hoje! Miss Biá, assim como outros artistas transformistas da época, começa se apresentando em boates e cabarés héteros, por um único motivo: não existiam boates LGBT+. Biá começou numa boate chamada La vie em rose e só depois passou a se apresentar em boates do vale, como a Medieval e a Corintho.

Na época, as drags não faziam shows com números separados um do outro, mas espetáculos completos, com roteiros, dirigidos, coreografados. Era o teatro de revista na buátchy, e a própria Miss Biá conta, em entrevistas, que teve de convidar militares para seus shows. O motivo? Na época vestir-se de mulher na rua era crime, com equivalência à prostituição. Isso obrigava as drags a se desmontarem para ir de uma boate para outra, e considerando que faziam shows em quatro ou cinco casas por noite, era uma trabalheira danada! Biá assim convida os queridos militares para sua apresentação, na busca de convencê-los a liberar ela e as manas para trânsito livre, de peruca salto e batom, sem risco de prisão.

Nos anos 70 e 80, a cultura drag floresce no mundo, principalmente a partir dos EUA de onde vêm musicais da Broadway como “A Gaiola das Loucas” e os filmes polêmicos de John Waters e a divina drag Divine. Neste momento drag – ou o conceito mais mainstream que temos hoje de drag – surge também no Brasil. Esses artistas da noite, que inicialmente performavam em boates de público heterossexual, ficaram limitados aos guetos LGBT+, ao passo que a repressão no Brasil aumentava cada vez mais.

Mas as manas não deitavam e seguiam fazendo seus shows, que variavam de imitações de atrizes de Hollywood e cantoras nacionais e internacionais a dublagens a também esquetes cômicas.

As drags começaram a aparecer mais na televisão também – e aqui, pausa para uma prece para o ícone Jorge Lafond, ou Vera Verão. Fazendo participações em programas de comédia, Vera Verão conquistou o Brasil inteiro com seus bordões, e sua presença que não passava despercebida por ninguém.

Não poderia, eu sei, deixar de citar o grupo Dzi Croquettes, grande referência para a cena drag no Brasil e um marco na história do movimento artístico de vanguarda do País, para aquém e além de qualquer recorte. Sempre brincando com os signos de gênero, os Dzi exibiam seus corpos seminus, num exagero de glitter e maquiagem, apresentando espetáculos provocativos que viravam o Brasil – e outras nações – de cabeça pra baixo.

Junto com os anos 90 vem a explosão drag, no Brasil e no mundo. Lá fora, a drag RuPaul estourou como cantora, apresentadora e modelo, e seu sucesso internacional influenciou o surgimento de novos artistas do transformismo. Marcia Pantera cria o estilo “bate cabelo”, até hoje um dos mais famosos e executados por drags. Não sabe? É quando, ao som de música eletrônica com batidas fortes, a drag dança en-lou-que-ci-da – balançando a cabeça, fazendo com que a peruca dance junto com ela. Olha, é difícil descrever, só vendo ao vivo pra sentir a força de um bate cabelo. Piscadela.

Como eu ia dizendo, junto com Marcia aparecem na cena Silvetty Montilla, Salete Campari, Nany People, Dimmy Kier, dentre tantas outras artistas que seguem vivendo do trabalho da arte drag.

Quase duas décadas depois RuPaul ataca novamente, e seu reality show RuPaul’s Drag Race estreia e estoura em 2009 nos EUA. Isso fomenta outra explosão drag no mundo – e, de novo, também no Brasil. O Trio Milano – Amanda Sparks, Tiffany Bradshaw e Penelopy Jean – acha caminho de volta para a arte drag no mainstream nacional, e junto com elas vem chuva de drags, de todos os tipos, para todos os gostos.

A partir daí é que nomes como Pabllo Vittar, Gloria Groove e Lia Clarck são facilmente associadas à descrição “cantoras drag”. A arte, cada vez mais popular no Brasil, também nos confere reality shows especializados, como o Academia de Drags apresentado por Silvetty Montilla no Youtube, e o Drag Me as a Queen apresentado por Rita Von Hunty (beijo, amiga!), Ikaro Kadoshi e Penelopy Jean.

É cada vez mais visível que fazer drag seja o principal trabalho de muita gente. É para mim. Drag deixou de ser expressão artística de gueto, hoje brilha no País e no mundo, e a oportunidade de apreciar os mais variados estilos de montações e performances nas mais variadas mídias só cresce, inclusive para mulheres que fazem drag (queen e king!). Tem drag para todos os gostos, então quer se montar, se monta, quer só assistir, só assiste. Mas não esqueça: drag é deboche, então se joga na diversão, e valorize artistas locais.

* A drag queen Abigail Foster é interpretada pelo ator, professor de teatro, pesquisador e ativista LGBT Gengiscan Pereira. Na ativa há três anos, Abigail deixa seu encanto onde passa – pergunte ao Festival de Cinema de Gramado. Glamurosa, já abriu shows de Liniker e Pabllo Vittar and está disponível para trabalhos, chama no Insta (@abigailfosterdrag). Gengiscan desenvolve pesquisa sobre processos criativos e história da cena drag.

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