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Opinião

25 anos depois de Eldorado do Carajás, a violência e a corrupção persistem

Do coronel Pantoja ao governador Almir Gabriel, ninguém pagou pelos crimes, escreve Eric Nepomuceno

Enterro das vítimas do massacre em 1996, no Pará. Arquivo e Memória MST/J.R. Ripper/Reprodução
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Por Eric Nepomuceno*

Em 1996, há exatos 25 anos, o 17 de abril foi uma quarta-feira. E lá pelas 7 e tanto da noite daquele dia, o coronel da Polícia Militar do Pará, Mário Pantoja, apoiou-se numa caminhonete Chevrolet A20 parada na margem da Rodovia PA-150, a uns nove quilômetros da pequena cidade de Eldorado do Carajás.

Ele arfava. Sobre seus lábios havia uma pequena espuma esbranquiçada. O suor molhava a gola do seu uniforme. E os dedos da mão direita estavam brancos pela força com que apertava o cabo de um revólver calibre 38. Tinha acabado de acontecer o Massacre de Eldorado do Carajás: 19 sem-terra estavam mortos, dois outros morreriam dias depois em hospitais da região, dezenas ficaram feridos e com sequelas para sempre. O coronel Pantoja cumpria ordens de seus superiores na PM, que, por sua vez, cumpriam ordens do secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, que obedecia ao então governador tucano do Pará, Almir Gabriel.

Uma grande marcha de sem-terra interceptou a rodovia que une várias cidades do sul do Pará. A ideia era ir primeiro para Marabá, a uns 90 quilômetros, e depois um grupo seguiria até Belém, a uns 800 quilômetros de distância, para pressionar e conseguir a autorização para ocupar a parte improdutiva e inútil da Fazenda Macaxeiras, cujos proprietários, aliás, tinham chegado a ela por meios mais do que duvidosos.

A verdade é que pouquíssima gente, fora do Pará, sabia da tal marcha. E a matança e o massacre num instante ganharam espaço não só no Brasil, mas em boa parte do mundo – graças principalmente ao trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado. Ele estava em Brasília naquele 17 de abril, inaugurando uma mostra de suas esplêndidas fotografias. Jantava com amigos quando soube da matança. Conseguiu, naquela mesma noite, um avião que o levou até Marabá. Suas fotos dos enterros e velórios correram e sacudiram o mundo. E o 17 de abril virou o Dia Internacional da Luta pela Terra.   

Passados 25 anos, o que mudou? Bem, aconteceram, sim, mudanças. Mas nenhuma para melhor. Em 2013, 27 anos depois do massacre de Eldorado do Carajás, morreu Almir Gabriel, o homem que governava o Pará quando a Polícia Militar fez o que fez. Nunca foi sequer indiciado, nunca foi levado à Justiça. 

Outro que também se beneficiou pelo manto da mesma impunidade foi Sette Câmara. Ironicamente, tornou-se consultor especializado em segurança pública. Em 2016, 20 anos depois de ter dado a ordem ao comandante da Polícia Militar para que fizesse o que fez, foi eleito presidente do Conselho de Administração do Fórum Nacional de Segurança Pública. 

A questão mais inquietante é que, desde 1996, a violência no campo não só persiste como aumentou, e o que mudou em boa parte dos casos foram os responsáveis por ela. Desde aquele agora longínquo 17 de abril não houve avanços significativos na reforma agrária e, na disputa pela terra, continua-se a matar desbragadamente País afora. 

Também não mudou a tenebrosa frequência com que se mata no Pará, que continua liderando a lista macabra de assassinatos. Mas é importante notar que o número e a frequência dessas mortes aumentam em outros estados, com destaque para Rondônia e Mato Grosso do Sul.

Estudiosos da questão agrária no Brasil coincidem num mesmo ponto: o País tem uma das estruturas fundiárias mais concentradas do planeta. Para Bernardo Mançano, professor da Universidade Estadual Paulista, trata-se de uma clara herança do sistema colonial: “Um por cento dos proprietários detêm 60% das terras”. 

Se 2016 marcou a passagem de 20 anos do massacre de Eldorado do Carajás, também foi marcado pela deposição da presidente reeleita dois anos antes, Dilma Rousseff, e a instalação, em seu lugar, de Michel Temer. A chegada de Temer à Presidência resultou em várias alterações na questão da terra, mas em detrimento dos pequenos agricultores, enquanto cresceram as concessões de benefícios em cascata aos grandes proprietários.

Outra consequência dos novos tempos está na mudança observada no cenário do trabalho escravo ou em situação análoga à escravidão. E de novo o Pará manteve-se no topo da relação, mostrando que também nesse tipo de violência nada mudou.

Talvez o melhor exemplo dos novos poderosos do Pará seja o da Agropecuária Santa Bárbara, do banqueiro Daniel Dantas, conhecido pela agressividade com que atua onde quer que ponha as mãos. Mudam os poderosos, surgem novos métodos de pressão, enquanto persiste, da parte das autoridades, o de sempre: inércia, omissão, cumplicidade, com as forças de Segurança Pública agindo como seguranças privadas nos dias de folga.

Com a chegada de Bolsonaro à Presidência e de Ricardo Salles ao Ministério do Meio Ambiente, o quadro se formou, perfeito: quando não há omissão, há claro incentivo à devastação do meio ambiente. E reforma agrária nem pensar. Bolsonaro dizia que os sem-terra formam um grupo de terroristas. Só não os ataca mais porque está plenamente dedicado a devastar não apenas o meio ambiente, mas o País inteiro, a começar pela vida.

Hoje, a Vila 17 de Abril, assentamento conquistado graças ao massacre de 25 anos atrás, tornou-se uma grande fornecedora de leite para a região vizinha. Também isso mudou, abrindo novos horizontes para quem habita naquelas terras que custaram vidas, vítimas que permanecem na lembrança dos sobreviventes. 

Tanto o coronel Pantoja quanto Sette Câmara foram levados pela Covid-19. Passados esses anos todos, continuam cravados na alma e na memória dos que lutam pelo direito a um pedaço de terra os mesmos 19 troncos queimados das castanheiras, erguidos em círculo lá na Curva do S, na entrada da Vila 17 de Abril.

 

*Eric Nepomuceno é autor de, entre outros livros, O Massacre, Editora Record, que conta o que ocorreu há 25 anos em Eldorado do Carajás.

Publicado na edição n° 1154 de CartaCapital, em 22 de abril de 2021.

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