

Opinião
2024, o ano em que o Brasil provou estar parado no tempo
Em cada frase deste texto, reside a memória de um ano que insistiu em nos lembrar que o Brasil nunca realmente deixou 1964 para trás


Se a democracia brasileira fosse um paciente, estaria na UTI, entubada, e com um quadro grave de infecção crônica por autoritarismo. A prisão de Braga Netto, após a revelação de seu papel no grotesco espetáculo golpista que tentou manter Jair Bolsonaro no poder, é apenas um sintoma. Um sintoma gritante, é verdade, mas que ilustra como o Brasil insiste em reviver 1964, agora colorido com filtros de Instagram e um pouco de glitter.
O caso do general, envolvido na famigerada Operação Punhal Verde e Amarelo — nome digno de série ruim— é o retrato de um país onde a Lei da Anistia foi o “Ctrl+Z” da democracia. Perdoamos torturadores e ganhamos como brinde uma democracia claudicante, na qual a repressão da ditadura se renova com novos slogans e hashtags. O agronegócio entra como coadjuvante — ou seria protagonista? — dessa tragicomédia, financiando golpes enquanto queima florestas e comunidades tradicionais.
Em 2024, nada nos surpreendeu, mas tudo revoltou. Tivemos o agronegócio, eterno vilão do meio ambiente, reafirmando seu poder como dono da caneta que avaliza desmatamentos e destrói populações quilombolas. Enquanto isso, a Justiça Climatológica insistia que comunidades tradicionais, responsáveis pelas áreas mais preservadas do Brasil, eram uma pedra no sapato do lucro predatório. Noutra ponta, a morte de Ryan da Silva, um menino de quatro anos, lembrou-nos que corpos negros continuam descartáveis em um sistema que faz do racismo uma política de Estado.
O ano também trouxe a ascensão triunfal dos “candidatos influencers”, mestres em transformar a política em um mix de reality show e circo digital. À revelia da lei eleitoral, eles disseminavam fake news e ganhavam seguidores à custa de desinformação. Tudo isso sob um céu cada vez mais cinzento, já que São Paulo, locomotiva do Brasil, perdeu completamente o controle da gestão pública e deixou as periferias à deriva enquanto suas elites brindavam em coberturas com vista para o caos.
Falando em caos, a militarização das escolas avançou como projeto de “educação” — ou seria de treinamento? — para transformar jovens em peças de uma engrenagem repressiva. Aliás, isso se conecta perfeitamente à violência policial, que continua como legado modernizado da ditadura. Antes, jogávamos opositores políticos em rios, hoje, enterramos jovens negros em valas comuns, com direito a câmeras para documentar o espetáculo de horror.
No campo eleitoral, vimos uma PEC que quase extinguiu as políticas afirmativas e reafirmou o racismo institucional como base da sociedade. Enquanto isso, a memória de Marielle Franco conclama justiça, agora, com os executores condenados, mas com mandantes ainda impunes.
Nesse ano, o Brasil prova que não precisa de máquinas do tempo para reviver o passado, tampouco de novas máquinas de tortura — as antigas ainda funcionam perfeitamente, adaptadas ao cenário urbano das periferias. Mata-se e morre-se como em 1964, sem uniformes de época, mas com a mesma brutalidade. O jovem atirado de uma ponte na calada da noite na periferia de São Paulo é um retrato de que o autoritarismo nunca precisou de fardas para persistir. O silêncio cúmplice do Estado, que antes jogava corpos em rios durante a ditadura, agora os descarta em becos e pontes, como se a democracia fosse apenas uma fachada decorativa para um sistema que decide, arbitrariamente, quem merece viver e quem será brutalmente assassinado.
Mas voltemos a Braga Netto. Sua prisão pode ser um marco — ou apenas mais um capítulo do livro que o Brasil insiste em reescrever. nossa democracia não é frágil, mas seletivamente frágil. Para alguns, como os golpistas de farda e terno, ela ainda oferece indultos e privilégios. Para outros, como as mães negras que enterram seus filhos, é apenas uma promessa vazia.
O Brasil de 2024 foi um espelho cruel de sua história. Enquanto resistimos à repetição de 1964, ecoamos a violência, a desigualdade e o autoritarismo que nunca abandonaram o palco. A pergunta que fica é: queremos continuar nesse teatro de horrores? Talvez a resposta esteja em entender que a democracia não é um estado de graça, mas um campo de batalha. Que Braga Netto sirva, então, como lembrete de que é preciso muito mais do que eleições para construir uma democracia. É preciso coragem para enfrentar os monstros do passado, que seguem rondando nossos dias com novas fantasias e velhas intenções.
Este texto carrega em suas linhas o eco dos muitos acontecimentos que marcaram 2024 e dos temas já explorados em artigos anteriores. É uma costura dos horrores do presente com as feridas do passado, recuperando as conexões entre justiça climática, violência racial, desinformação política, a força das comunidades tradicionais e as ameaças constantes à democracia. Em cada frase, reside a memória de um ano que insistiu em nos lembrar que o Brasil nunca realmente deixou 1964 para trás.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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