2022 nos dá a chance de buscar a mudança da necropolítica para a política da vida

Não apenas destruímos o meio ambiente, mas continuamos a agredir e matar negros e pobres da forma mais selvagem, escreve Milton Rondó

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“Mas aquele que não espera o inesperado, jamais o encontrará.”
Heráclito.

A citação encontra-se em A redescoberta da existência (Editoras Vozes e Nobilis), de autoria da monja Coen e do frade beneditino Anselm Grün.

A abertura para o novo deveria guiar-nos sempre, não apenas no início do ano. Mais do que possibilismo, deveria tratar-se de determinismo.

Com efeito, a monja Coen esclarece naquela obra: “Neurocientistas afirmam que só temos 5% de livre arbítrio; os outros 95% [estão] atrelados à genética e às nossas experiências intra e extrauterinas.”

Nesse contexto, é importante lembrarmos nossa pertença universal. Na tradição budista, a monja recorda-nos o belíssimo pensamento do próprio Buda: “Eu e a grande terra e todos os seres juntos simultaneamente nos tornamos o Caminho.”

Que reflexão mais apropriada para este inicio de século, em que o desgoverno brasileiro destrói a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal a uma velocidade e violência que poderão ditar o fim da maior floresta do mundo, que encerra a maior biodiversidade mundial!


Pior, não apenas destruímos o meio ambiente, mas continuamos a agredir e matar negros e pobres da forma mais selvagem.

Em Açailândia, no Maranhão, um jovem negro foi espancado pelos próprios condôminos (uma vizinha inclusive), que desconfiaram não ser ele o dono do veículo, de propriedade dele.

No Rio de Janeiro, uma criança, o garoto Kevin, de seis anos, foi vítima de “bala perdida”, durante “ação” da polícia, na região metropolitana da capital, no bairro Inconfidência, município de Queimados. As meninas Ludmila e Gabriela também ficaram feridas. As últimas palavras de Kevin foram: “Mamãe, fica comigo”.

Em Não matem o futuro dos jovens (Dalai Editore), o sacerdote italiano Don Andrea Gallo recorda o Papa Bom, São João XXIII: “Quem diz trazer a democracia com as armas é alheio à razão, é louco.”

Ao recordar que a Itália foi um dos primeiros países a abolir a pena de morte, Don Andrea cita o grande jurista milanês Cesare Beccaria (1738 – 1794): “Basta com a pena de morte, não tem nenhum significado jurídico.”

No Brasil das periferias – e nas demais periferias do mundo, como as qualifica o Papa Francisco – a pena de morte é, de fato (e Sérgio Moro gostaria que fosse também de direito por meio da excludente de culpabilidade), diuturnamente aplicada contra os mais frágeis. O indefeso Kevin, de seis anos, foi a primeira vítima, neste ano, de um sistema altamente injusto, pecador, para os cristãos.

Sobre o Brasil, o padre emite juízo preciso: “Como clérigo salesiano, estive dois anos no Brasil, portanto conhecia um pouco a realidade sul-americana: muitos ricos escandalosamente ricos, imensas favelas de pobres escandalosamente pobres, miséria.”

No prólogo de A garota que não se calou (Editora Verus), a escritora nigeriana Abi Daré informa-nos que na Nigéria, gigante africano, com população de aproximadamente 180 milhões de pessoas – sétimo país mais populoso do mundo e sexto maior exportador de petróleo bruto do mundo -, 100 milhões de nigerianos e nigerianas vivem na miséria, apenas sobrevivendo, com menos de 1 dólar por dia. Por outro lado, Daré agrega: “Os senadores nigerianos estão entre os legisladores mais bem pagos do mundo. Um senador ganha cerca de 240 milhões de nairas (1,7 milhão de dólares) por ano entre salário e benefícios.”

Em recente debate no Congresso Nacional, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) justamente chamou atenção dos pares para a imoralidade de decidirem sobre os destinos dos mais vulneráveis, na conveniente ausência deles. Agiu muito bem o senador, pois estamos em situação ainda pior do que a do ciclope africano, que, ao menos, tenta enxergar-se por meio da cultura, como Abi Daré nota: “A indústria cinematográfica da Nigéria se chama Nollywood. Com mais de cinquenta filmes produzidos semanalmente, a indústria vale cerca de 5 bilhões de dólares e é a segunda maior do mundo, atrás apenas de Bollywood, da Índia.”

Do outro lado da África, na Somália, o número de cidadãos e cidadãs em situação de extrema pobreza aumentou 30% no último ano, fazendo com que as pessoas em necessidade humanitária passassem de 5,9 para 7,7 milhões.

Na entrevista a Luciana Rosa, publicada em CartaCapital, o cientista político Ricardo Romero recorda-nos o caminho a seguir, citando o filósofo político Antonio Gramsci (1881-1937): “O pessimismo nos dá a inteligência e o otimismo nos dá a força de vontade.”

Ainda em CartaCapital, Alysson Oliveira resenha Arqueologias do futuro (Editora Autêntica), de Frederic Jameson, e observa: “Uma manifestação artística é, por sua própria natureza, política.” Ao que acrescenta: “Ao se debruçar, com seriedade, sobre uma literatura geralmente esnobada pelo cânone, ele prova que toda produção artística tem muito a dizer sobre o mundo em que vivemos. Basta saber olhar.”


2022 oferece a possibilidade de não apenas mantermos os olhos bem abertos, mas também buscarmos nas urnas a mudança de rumo da necropolítica para a política da vida, em abundância.

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