Mundo

Xangai vive o sonho chinês. E também seu pesadelo

A cidade já é próspera e imponente como quer o governo central, mas é também muito desigual

O skyline de Xangai, com edifício cada vez mais altos e imponentes
Apoie Siga-nos no

A China entrou na década da construção do sonho chinês, para usar o slogan cunhado pelo novo presidente Xi Jinping no início do mandato, em março deste ano. O conceito remeteria à renovação da nação, para a qual o governo espera contar com a mobilização de todos. Uma nação rumo à prosperidade e felicidade, segundo o discurso oficial.

Este sonho ainda é novidade. Já a adoção de um slogan, nem tanto. É uma espécie de tradição entre os dirigentes comunistas chineses levantar uma bandeira que garanta suporte e um rumo para o seu mandato. A do antecessor, Hu Jintao, era “sociedade harmoniosa”. Em nome dela, eram barradas quaisquer dissidência, manifestação ou declarações públicas contra o governo. Elas ainda o são, mas agora em busca de outro objetivo.

O sonho chinês, assim como a sociedade harmoniosa, é um conceito partidário, um movimento de baixo para cima. O sonho que o povo sonha pode ser outro, ainda não está em discussão – e o conceito de felicidade é tão vago quanto o do próprio sonho. Já a prosperidade almejada pelo governo tem a ver, claro, com a manutenção do crescimento econômico chinês, o motor que impulsiona uma sociedade em que há cada vez mais diferença entre ricos e pobres, mas onde ainda reside um sentimento de que todos terão o seu lugar ao sol.

Mesmo antes de ser bandeira governamental, o sonho chinês já havia aportado em uma cidade, Xangai. Em seus 6,3 mil quilômetros quadrados – pouco menos de um terço da área da capital, Pequim – a população já beira os 24 milhões. Ali, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita ronda os 13 mil dólares anuais, mais do que o dobro da média nacional. É o centro financeiro chinês, a cidade mais cosmopolita, onde a China conversa mais de perto com o Ocidente.

A atração entre estes dois mundos é antiga. Porto importante, Xangai chamava a atenção mundial ainda no século 19. No seguinte, pelos idos de 1930, atingiu o apogeu cultural, terra de jazz e de cinema, a Paris do Oriente, como era chamada. Tratados de concessão de trechos da cidade garantiram a implantação de arquitetura europeia, e aqui se encontram exemplares tocantes de Art Deco – como o elegante Hotel Metropole, perto do Bund, à beira do Rio Huangpu, que divide a cidade nova e a cidade antiga. Ambas constituem o sonho chinês.

A parte nova, Pudong, empresta a sua silhueta para dez entre dez fotos ilustrativas da cidade. Ali o sonho chinês se concretiza há duas décadas. A construção de arranha-céus fez com que uma vila de pescadores se transformasse no cenário à Jetsons de 1994 para cá. É a versão palpável de tudo o que o chinês gosta: imponência, colorido, neon. Difícil dizer que seja elegante, mas impossível chamar de brega. Melhor dizer que é delírio.

O bairro vai abrigar o segundo prédio mais alto do mundo, a Shanghai Tower, que terá 632 metros, só atrás do Burj Khalifa, com seus 828 metros em Dubai. A construção já ultrapassou os 492 metros do Shanghai World Financial Center, hoje o maior prédio da China já concluído e o quarto no mundo. É ao lado deles que está a torre Jin Mao, o mais elegante e cujos 421 metros parecem ter encolhido. Inaugurada em 1999, era o prédio mais alto da China.

A nota interessante é a conexão que a Jin Mao Tower tem com a cultura chinesa: seus 88 andares estão separados em oito seções, numa alusão à riqueza. O número 8 é considerado auspicioso pelos chineses devido à pronúncia em mandarim, “ba”, semelhante à de prosperidade.

A parte antiga, Puxi, carrega a herança da era pré-comunista. Dizer que o sonho chinês tem inspirações apenas ocidentais seria muita pretensão – e a Jin Mao Tower prova o contrário. Mas é ali que os dois mundos se encontram e se mesclam de forma mais óbvia. O número 2 da Avenida Zhongshan Dong Yi, conhecida mesmo como o Bund, é um belo exemplo. É neste endereço que o tradicional Waldorf Astoria abriu, em 2010, sua primeira filial asiática. Para honrar a história local, recriou o Long Bar, que cem anos antes abrigava apenas frequentadores do Clube Britânico da cidade.

Os 34 metros de balcão em madeira escura dão o clima austero, recriado a partir de fotos de época. Todas as noites, uma banda norte-americana de jazz embala os frequentadores. Não há mais distinção entre nacionalidades, mas esteja certo: eles integram a elite econômica da cidade – local ou expatriada – e visitantes endinheirados que pouco ligam por pagar 35 reais por um drinque. Da janela, se vê as luzes piscantes dos arranha-céus de Pudong. A nata que já embarcou no sonho chinês mostra que ele também agrada aos ocidentais.

O estilo de vida da cidade – vibrante, cosmopolita e ainda orgulhosamente local – atrai hordas de turistas chineses todos os dias. Em uma tarde de outono, ao passear à beira do Rio Huangpu, era possível distinguir vários grupos vindos do interior. Eles vestem sempre bonés, a fim de que o guia identifique facilmente alguém desgarrado.

Um dos grupos mais animados, cujo integrante mais novo deveria ter algo entre 60 e 65 anos, vinha de Yunnan, a província que tem ares subtropicais e faz fronteira com o Vietnã. Arranhavam um mandarim básico, pois cresceram falando a língua local. Estavam maravilhados com a cidade grande. Não souberam dizer, no entanto, se gostaram mais do que haviam visto em Pequim – o centro politico e histórico. O futuro que querem para a China e que presenciam hoje em Xangai mescla-se com a história imperial representada pela capital.

Mas o sonho chinês em Xangai mostra tons de pesadelo vez por outra. Na cidade, vivem mais de 9 milhões de trabalhadores migrantes, dos quais entre 6% e 7% não têm emprego. Nenhum deles tem a permissão de residência local, um documento chamado hukou e que dá acesso a serviços como saúde e educação. Cada residente chinês acaba ligado ao local onde nasceu por conta do hukou. Toda a massa que se move pelo país fica à margem do já básico sistema de assistência social. A mobilidade que permitiu a mão de obra barata para a indústria e a construção civil – e garantiu a opulência de Xangai – também privou muitos cidadãos de dentro do próprio país de direitos elementares.

Hoje, apesar das dificuldades, muitos não querem mais voltar para o local de origem, em geral, na zona rural. Botaram as mãos na construção do sonho chinês e querem uma parcela para chamar de sua. Caberá ao governo que quer espalhar este sonho, também garantir que ele atinja todos os chineses. Xangai já mostra que não é tão fácil assim.

ENTENDA MAIS SOBRE: ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo