Mundo
Volta para a tua terra
Os países que mais envelhecem e empobrecem põem a culpa nos imigrantes por sua própria decadência


Portugal, Itália e Alemanha adotaram nos últimos meses medidas mais duras contra a imigração. As ações são dirigidas principalmente contra estrangeiros pobres e vulneráveis do continente africano ou de países como Sri Lanka, Nepal, Paquistão, Afeganistão, Síria e Bangladesh, que buscam a Europa para fugir de guerras, perseguições, crises e desemprego. Desta vez – e eis a novidade –, brasileiros e argentinos agraciados, por descendência longínqua, com passaporte europeu, também serão prejudicados.
As medidas que mais afetam os brasileiros foram tomadas por Itália e Portugal. No caso italiano, o Parlamento alterou a Lei da Cidadania de 1992, que não impunha limites geracionais ao direito de sangue. Com a reforma, a solicitação de cidadania fica restrita a apenas duas gerações de nascidos fora da Itália, com a condição adicional de que o pai ou avô do requerente não tenha nenhuma outra nacionalidade, a não ser a italiana. Essa é uma forma de fechar a porta para novas naturalizações. A outra foi boicotar um referendo para flexibilizar as regras da concessão de cidadania a estrangeiros que vivem legalmente no país. O referendo, realizado ao longo de dois dias, no domingo 8 e na segunda-feira 9, propunha diminuir o período mínimo de residência na Itália para quem deu entrada em pedidos de cidadania – a exigência é de dez anos de residência e a proposta era cortar o tempo pela metade. O comparecimento às urnas ficou, no entanto, abaixo do mínimo requerido, de 50%, o que invalidou a consulta pública, mantendo a regra atual inalterada. A abstenção de aproximadamente 70% foi um modo silencioso de fechar a porta a novos cidadãos.
Em Portugal, o governo extinguiu o mecanismo chamado de “manifestação de interesse”, criado em 2007. Por meio dele, qualquer estrangeiro podia entrar no país declarando buscar trabalho ou estudo. Agora, é preciso um contrato prévio para ser aceito. Nações da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa continuam a ter alguns benefícios, mas o acesso a essas facilidades está obstruído pela demanda gigantesca de revisão dos pedidos feitos por meio da “manifestação de interesse”. O governo tenta zerar as análises represadas pela regra antiga. Desde então, dos 73 mil pedidos de residência feitos por brasileiros, 7,3% foram negados.
Na Alemanha, o chanceler Friedrich Merz assumiu o cargo em 6 de maio e, dois dias depois, declarou que a imigração constituía uma situação de “emergência nacional”. Com isso, conseguiu suspender automaticamente a análise de todas as novas solicitações de refúgio apresentadas por estrangeiros que alegam fugir de guerras e perseguições por razões políticas, étnicas e religiosas. A medida restritiva acabou revertida em 2 de junho por uma decisão de primeira instância da Justiça alemã, que deu ganho de causa a um grupo de cidadãos somalis, mas Merz e seu gabinete continuam empenhados em fechar as portas.
Partidos conservadores tradicionais têm abraçado a agenda da extrema-direita
As restrições impostas a imigrantes na Europa são uma resposta de setores políticos conservadores ao apelo crescente dos partidos de extrema-direita. Muito embora legendas radicais como o Chega, em Portugal, e a AfD, na Alemanha, ainda não tenham chegado ao poder, elas experimentam crescimento a ponto de aumentar o número de cadeiras no Parlamento a cada nova eleição, introduzindo no debate público propostas antes impensáveis. Para não ficar para trás, partidos da direita tradicional ou de centro, que compõem há décadas o mainstream político europeu, passaram simplesmente a aderir a propostas abertamente nacionalistas e xenofóbicas, para não perder votos.
“A extrema-direita cresce e consolida um discurso nacionalista de tipo excludente, com o qual tenta reafirmar laços identitários e construir uma versão na qual migrantes são associados a ameaça”, afirma João Carlos Jarochinski, professor do mestrado em Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima, que se converteu em um núcleo importante de estudo do tema a partir do fenômeno da migração venezuelana para o Brasil. “Essa ameaça tal como percebida pela Europa não é só ao emprego ou aos sistemas nacionais de saúde, como se dizia antes, mas é uma ameaça cultural. É uma ideia de que essa imigração vai desconstruir os valores e a identidade europeia. A extrema-direita vende com êxito essa ideia de insegurança do modo de vida europeu.”
Na prática, os imigrantes são indispensáveis para a economia de um continente europeu cuja população envelhece e encolhe ano a ano. Postos de trabalho em setores como os de limpeza, construção civil e cuidadores de idosos são largamente preenchidos por estrangeiros. Em capitais europeias famosas por sua culinária, como Paris, é comum que restaurantes frequentados por turistas ávidos por provar o tempero local sejam movidos a cozinheiros cingaleses. É esse exército jovem que também consome produtos locais e paga impostos que financiam a aposentadoria dos europeus envelhecidos.
“Não há dúvida de que esses imigrantes são necessários para a economia da Europa. Sem imigração, a população de Portugal, por exemplo, teria diminuído nos últimos anos. Isso afetaria a economia, basta você ver as diferenças no padrão de consumo entre um jovem e um idoso. Mesmo assim, a extrema-direita vende com sucesso essa retórica contra a imigração”, diz Jarochinski, notando que essa foi a forma encontrada por esse setor político radical para discutir a questão do emprego com a esquerda, que tem historicamente no mundo do trabalho o eixo de sua retórica.
O pesquisador destaca o elemento de racismo presente nesse debate. “Os países da Europa não são contra a migração em si, porque ninguém fala a sério em rever o Espaço Schengen”, o acordo de livre trânsito, residência e trabalho entre os nacionais dos países do bloco. Da mesma forma, “ninguém fala de acabar com o programa Erasmus”, que facilita as trocas migratórias no espaço acadêmico europeu. “A questão são os chamados extracomunitários. O medo é dos mais pobres.” •
Publicado na edição n° 1366 de CartaCapital, em 18 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Volta para a tua terra’
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