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Viver para trabalhar?

Jovens se rebelam contra as excessivas jornadas na Coreia do Sul

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Viver para trabalhar?
Descanso. Os millenials e a geração Z rejeitam a cultura de longas horas de trabalho e valorizam o tempo livre e a realização pessoal – Imagem: iStockphoto
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“Trabalhar durante minhas férias e nos fins de semana tinha virado rotina”, diz Lee Sang-hyuk, ao descrever a cultura de horas extras na grande empresa farmacêutica para a qual trabalhava perto de Seul. “Aos poucos percebi que minha vida e minha saúde se deterioravam devido ao excesso de horas. Eu não tinha energia e negligenciei meus relacionamentos pessoais.” Sang-hyuk passou a sentir dores nas costas por passar muitas horas sentado à mesa e disse ter se tornado ansioso e letárgico. “Nas poucas vezes que consegui encontrar meus amigos, não pude nem aproveitar pois só pensava em trabalho. Achei que eu era o problema”, disse o homem de 35 anos.

O que Sang-hyuk fez em seguida teria parecido extraordinário para um empregado na Coreia do Sul, com sua cultura de longas jornadas de trabalho: pediu demissão. Sua história não é um caso isolado. Representa um movimento mais amplo a tomar forma na Coreia do Sul entre uma geração de jovens determinados que se rebelam contra o domínio sufocante da rígida cultura de trabalho do ­país. A “geração MZ”, como são chamados, abrangendo tanto a geração Z quanto os millennials, está no centro de uma potencial mudança geracional.

A gota d’água para alguns veio em março, com a proposta do governo de revisar o sistema de jornadas de trabalho e permitir até 69 horas semanais. A lei atual estabelece que o princípio básico de 40 horas semanais de trabalho seja aplicado às empresas, com horas extras limitadas a um máximo de 12, embora existam exceções. O plano foi apresentado como uma solução para os desafios do mercado de trabalho que oferecia flexibilidade às empresas ao permitir-lhes calcular a jornada média de trabalho em períodos de tempo mais longos. Antes de se tornar presidente, Yoon Suk-yeol, conservador visto como pró-empresas, sugeriu jornada de 120 horas por semana, se necessário. O projeto também foi promovido como uma forma de beneficiar as mulheres trabalhadoras. Ao acumular mais horas extras, elas poderiam ser trocadas por futuras folgas e se dedicar à família em um país que tem a menor taxa de natalidade do mundo.

A proposta gerou, porém, reação de jovens, sindicatos e políticos da oposição e obrigou o governo a repensar sua decisão. Um porta-voz do Partido Democrata, o principal de oposição, chamou a administração Yoon de “sem vergonha” e disse que o país volta a uma “história de inferno trabalhista”.

Os jovens trabalhadores se manifestaram contra uma “política irresponsável e desumana, desligada da realidade”, e o projeto foi amplamente criticado nas redes sociais. O governo pareceu recuar rapidamente, com a secretária de imprensa de Yoon, Kim Eun-hye, prometendo ouvir mais as opiniões dos trabalhadores no futuro, especialmente aqueles da geração MZ. Uma proposta substituta ainda não foi apresentada, e há temores de que a ideia de 69 horas retorne de alguma forma ainda neste ano.

Um projeto do governo queria ampliar para 69 horas semanais e permitir até 120 horas

A Coreia do Sul é um dos países com maior jornada de trabalho no mundo industrializado. Isso é frequentemente visto como um legado de seu notável crescimento econômico. Historicamente, os trabalhadores permaneciam em uma única empresa até a aposentadoria, pois isso dava segurança no emprego e garantia de renda. Muitas vezes esse arranjo vinha acompanhado da expectativa de longas horas de trabalho e dedicação à empresa. “Essa crença cultural continua a ser perpetuada hoje”, diz Lee sobre a geração de seus pais, que ainda acredita no autossacrifício pelo bem da família e do país. “No começo, meus pais me disseram para aguentar para ganhar mais para o desenvolvimento da minha carreira. Mas quando finalmente tomei a decisão de partir eles prontamente me apoiaram e reconheceram minha opção corajosa de buscar uma vida melhor para mim.”

Horas de trabalho excessivas têm sido associadas a um risco ampliado de suicídio na Coreia do Sul. É a principal causa de morte entre coreanos de 10 a 39 anos. “Os jovens aprenderam que as longas horas de trabalho podem ser prejudiciais”, declara Kim Ji-hyun, chefe de políticas do Youth Community Union, grupo ativista que defende melhores condições de trabalho para jovens adultos. “Eles perceberam que, mesmo quando trabalham diligentemente em seu local de trabalho atual, os benefícios e lucros da empresa nem sempre chegam aos funcionários.”

Os jovens têm ficado cada vez mais ansiosos por se comprometer com uma única empresa por um longo período, especialmente devido ao aumento do custo de vida. Segundo uma pesquisa do portal de informações sobre empregos ­JobKorea, 55% dos trabalhadores da geração MZ não têm intenção de ocupar cargos de chefia, enquanto 47% disseram estar preparados para mudar de empresa. “Eles podem ter visto familiares, parentes ou amigos que precisam sobreviver por conta própria, mesmo depois de adoe­cerem por excesso de trabalho. É natural que protestem contra algo que sabem ser errado”, diz Ji-hyun.

Lee Myung-ha, 36 anos, trabalhava numa agência do governo e muitas vezes ficava no emprego 24 horas por dia, na condução de negócios internacionais. Ela às vezes trabalhava até as 4h da manhã e sentia que estava sempre sob pressão para provar que estava fazendo o melhor. “Senti que não era eu mesma.” Como a mais jovem de sua equipe, esperava-se que ela também assumisse tarefas demoradas adicionais, como organizar festas de aniversário e gerenciar materiais de escritório. Ela diz que nunca foi compensada por essas tarefas extras.

Uma pesquisa da organização cívica ­Gapjil 119, que faz campanha contra abusos de poder e maus-tratos no local de trabalho, constatou: 59% dos entrevistados que trabalhavam horas extras disseram não ser pagos por isso. “Excluindo assédio no local de trabalho, a consulta mais comum que recebemos está relacionada a salários e horários excessivos”, afirma Oh Jin-ho, diretor-executivo da organização. A proposta de 69 horas, diz, era como legislar a promoção da morte por excesso de trabalho, uma causa de morte que oficialmente cobra cerca de 500 vidas por ano, embora o número real provavelmente seja maior. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

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