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Violência policial gera debate sobre racismo nos EUA

Os dois policiais que mataram Michael Brown e Eric Garner não serão julgados, e o país tenta entender os motivos dessas decisões

Manifestantes ocupam a famosa Grand Central Station, em Nova York, durante protesto pela decisão de não julgar Daniel Pantaleo, cuja ação resultou na morte de Eric Garner
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De Nova York

Em menos de duas semanas, dois júris decidiram não indiciar criminalmente policiais brancos acusados de matar cidadãos negros desarmados em duas grandes cidades americanas. No condado de Saint Louis, onde fica a cidade de Ferguson, Darren Wilson não será processado pelos seis tiros que resultaram na morte do adolescente Michael Brown, em agosto. Em Nova York, a morte de Eric Garner, pai de seis filhos, ocorrida em julho por ação do policial Daniel Pantaleo, também foi considerada ato de legítima defesa. Nos dois casos, a maioria do júri era formado por brancos.

A diferença entre os dois casos, escancarada nas palavras de ordem repetidas por centenas de manifestantes que tomaram as ruas de Nova York na noite de quarta-feira 3 e fecharam a West Side Highway, é o fato de o aparente asfixiamento de Garner ter sido registrado por câmeras e reproduzido no site do segundo maior jornal da cidade, o Daily News [veja o vídeo abaixo – as imagens são fortes]. Se o fim de Brown, flagrado por uma câmera de segurança de um mercado em Ferguson pouco antes de sua morte, roubando o equivalente a 48 dólares em cigarros, não chegou a ser registrado, o “não consigo respirar”, a derradeira frase de Garner, um homem asmático, acusado de vender cigarros ilegalmente nas ruas do distrito de Staten Island, pode ser ouvida claramente na gravação. A frase de Garner se transformou em senha para uma discussão de dimensões inéditas dos métodos e conseqüências do racismo na era Obama.

Na segunda-feira 1º, o primeiro presidente de origem afro-americana dos EUA recebeu um grupo de ativistas, administradores, representantes de associações de policiais e do setor jurídico para uma reunião sobre o sistema criminal americano. Barack Obama criticou a militarização da polícia e acenou com o investimento de 263 milhões de dólares em iniciativas de aproximação entre oficiais e líderes comunitários. Do montante, que ainda precisa ser aprovado pelo Congresso, 75 milhões de dólares foram destacados para o fornecimento de 50 mil câmeras de corpo, que registram as ações dos policiais quando em serviço.

Defensores do uso do aparato digital apresentam números como os de Rialto, cidade de 100 mil habitantes do sudoeste da Califórnia, que registrou uma redução de 60% nos crimes depois da instalação das câmeras. O problema, para a Casa Branca, é que Daniel Pantaleo estava justamente com uma destas câmeras no momento da altercação com Garner. “Está se receitando um band-aid para um problema de proporções gigantescas. Fornecer câmeras para policiais não os impedirão de me dar um tiro na cabeça, até porque é deles a decisão de quando se deve desligar ou não o dispositivo”, afirmou, na saída da reunião em Washington, o rapper e ativista Antoine White, o T-Dubb-O.

O jornalista Pervaiz Shallwani, do Wall Street Journal, frisa que a morte de Garner, um negro alto e obeso, exatamente como Michael Brown, foi considerada homicídio pela própria investigação policial. A corporação defende Pantaleo, afirmando que a imobilização, prática banida em Nova York desde 1993, foi feita de acordo com técnica aprovada pela Academia de Polícia. “Mas um dos paralelos com Ferguson é justamente o da cristalização da percepção de ser impossível processar um policial nos EUA, mesmo quando a autópsia caracteriza a morte da vítima, desarmada, como homicídio”, sintetiza Shallwani.

O jornal The New York Times, em seu caderno dominical de pensatas, trouxe uma série de artigos em torno da questão “para onde vamos depois de Ferguson?”. Um dos mais duros foi o do colunista Nicholas Kristof. O articulista lembrou que há, proporcionalmente, mais negros encarcerados nos EUA hoje do que durante o pior período do regime segregacionista sul-africano. E que a desigualdade social entre negros e brancos é maior nos EUA da Era Obama do que na África do Sul dos anos 70: “Parte do problema está nos cidadãos bem-intencionados, que condenam o racismo mas estão satisfeitos com o sistema. Vivemos o que o sociólogo Eduardo Bonillo-Silva, da Universidade de Duke, batizou de ‘racismo sem racistas’, marcado por fortes estereótipos”, escreve. “É impossível saber ao certo o que ocorreu em Ferguson, mas pode-se reconhecer o padrão: de acordo com a associação independente de jornalismo investigativo ProPublica, jovens negros são mortos a tiro pela polícia americana 21 vezes mais do que os brancos da mesma idade”, afirma.

O professor de sociologia Michael Eric Dyson, da Universidade de Georgetown, critica a tentativa de se desumanizar a vida dos negros americanos. O acadêmico acusou o presidente de criticar os protestos violentos enquanto deixa de mencionar a praga de policiais brancos matando jovens negros desarmados, tediosa e doentiamente repetitivos, criando um imposto psicológico a ser pago pelas mentes negras: “Obama celebra o progresso racial que diz ter testemunhado em ‘seu tempo’, como se sua história, suas conquistas, fossem nossas também. E sugere que a soma de nossas vitórias políticas em sua presidência será menor do que nosso sofrimento persistente e diário”. Pressionado pela esquerda democrata, Obama reagiu aos protestos de Nova York com o anúncio de que o Departamento de Justiça, comandado por outro negro, Eric Holder, iniciou inquérito federal pela suspeita de violação dos direitos civis de Garner.

Diretora do Fundo de Defesa Legal da Associação Nacional para o Avanço dos Cidadãos Negros (NAACP), Christina Swarns afirma que os protestos refletem um momento de ruptura na comunidade afro-americana, para além do símbolo político das duas vitórias eleitorais de Obama: “Estes cidadãos americanos assassinados têm pais, têm famílias, e estes crimes não podem ficar sem resposta. Seguiremos repetindo até todos entenderem: as vidas dos negros também importam”.

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