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Vidraça suja

O Kremlin apela à propaganda para acalmar a população contrária ao envio de reservistas à guerra na Ucrânia

O governo já recrutou 200 mil soldados - Imagem: Sefa Karacan/Anadolu Agency/AFP
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Alina teve de ir três vezes ao centro de recrutamento para livrar o marido da guerra na Ucrânia. Ela disse conhecer as autoridades locais que administravam a mobilização em sua cidade ao sul de Makhachkala, capital do Daguestão. Quando seu marido foi convocado, começou a incomodá-los para revisar o caso. Ele tem problemas de saúde por excesso de peso e serviu no exército há mais de 15 anos. “Eu disse a eles: ‘Que guerra?’ Eles estão loucos? E o oficial apenas me deu um olhar triste.”

Na semana passada, enquanto eclodiam protestos no Daguestão e a raiva popular crescia com o recrutamento, algo mudou. De repente, eles disseram a Alina que a convocação do marido foi um erro. “Falaram que tivemos sorte, mas não poderiam nos ajudar se houvesse outros atos.”

O primeiro recrutamento na Rússia desde a Segunda Guerra Mundial causou caos e raiva incomparáveis em todo o país. Centenas de milhares de homens deixaram suas casas. Alguns foram levados para lutar na Ucrânia e um número maior rumou para as fronteiras para evitar o alistamento militar. Uma piada popular agora mostra memes na internet com os homens apagados. “Enquanto isso, em Moscou”, diz a piada.

Agora, para salvar o recrutamento de Vladimir Putin, um exército de propagandistas russos e tecnocratas locais estão criticando decididamente o processo, chamando atenção para algumas “maçãs podres” nos centros de recrutamento da Rússia, em vez de apontar os fracassos militares e as más decisões tomadas por Putin, que levaram a guerra ao seu oitavo mês.

Todos os dias, Margarita Simonyan, chefe da empresa de mídia RT e uma conhecida defensora da guerra, publica histórias de russos que, segundo ela, receberam avisos de convocação emitidos ilegalmente. A divulgação dos nomes e a vergonha destinam-se a pressionar os comitês de recrutamento, diz ela. Mas também reforça suas credenciais políticas como alguém que pode pressionar o governo por anistias do alistamento.

“Vocês realmente acham que, se Putin não quisesse enviar recrutas para a Ucrânia, ele iria mandar cabeleireiros, cardiologistas, pessoas com dor nas costas, o professor do ano de Pskov, um músico de orquestra ou um diretor de teatro?”, indagou na televisão estatal na semana passada.

As críticas aos comitês de recrutamento desviam a pressão de Putin, a quem ­Simonyan muitas vezes chama apenas de “o chefe”. “Eles estão todos tentando agir no interesse de Putin, de uma forma ou de outra”, disse Tatiana Stanovaya, fundadora da firma de análise R.Politik. “Não é que algum deles realmente se arrependa do que aconteceu ou acredite que a abordagem de Putin esteja errada… eles estão tentando abrandar os excessos do sistema. Para proteger Putin.”

A campanha exime Vladimir Putin de responsabilidade pela convocação de civis sem condições de lutar e culpa as “maçãs podres” dos centros de recrutamento

A convocação de reservistas parece mais impopular do que a própria guerra. Para se antecipar à raiva, até Putin criticou o processo. “Se um erro for cometido, repito, deve ser corrigido”, disse, em uma teleconferência com seu conselho de segurança, na semana passada. “Os que foram convocados sem motivo adequado devem ser enviados de volta para casa.”

Enquanto o projeto se tornava cada vez mais controverso, diversas celebridades e jornalistas procuravam acalmar os temores em Moscou, anunciando que agora ele estava sendo supervisionado pelo prefeito Sergei Sobyanin, que defende soluções baseadas em dados para os problemas da cidade. “O recrutamento em Moscou está sob controle adicional”, escreveu Ksenia Sobchak, uma figura pública russa que é filha do ex-mentor de Putin. “Bem, sejamos justos: Sobyanin está fazendo isso.”

Há anos, o governo da Rússia procura substituir eleições livres e justas por soluções tecnocráticas para os problemas da vida cotidiana. Confie nos gerentes que instalamos, diz o slogan, e prometemos que eles ouvirão suas preocupações. Essa ideia agora passou para a mobilização de Putin. Embora o recrutamento em si seja irrepreensível, eles afirmam acaloradamente que está sendo mal administrado.

Há uma sensação de que os políticos e especialistas da Rússia estão fazendo testes para cargos mais altos no governo em um assunto que tocou a maioria dos lares russos. “Você pode ver que há novos atores de poder surgindo, tentando conquistar influência política”, avalia Alexey ­Kovalev, chefe do escritório de investigação do

Meduza, site independente de notícias em russo com sede em Riga, na Letônia.

Eles incluem o fundador do exército mercenário Grupo Wagner, ­Yevgeny ­Prigozhin, e o líder da Chechênia, ­Ramzan Kadyrov, disse Kovalev. “Mas também há Sobyanin… e ele está tentando se retratar como um governante tecnocrático benevolente.”

No centro de migração de ­Sakharovo, nos subúrbios de Moscou, Sobyanin anunciou um “balcão único” para migrantes que queiram se juntar ao esforço de guerra, enquanto solicitam seus documentos de trabalho ou cidadania.

Um ponto de mobilização temporário no Museu de Moscou é todo clean, com estética minimalista e letras nítidas. Ele exala a estética moderna, de espaço aéreo, que se tornou onipresente na Moscou de Sobyanin. Enquanto os homens esperam lá dentro, uma tevê mostra antigos filmes de guerra soviéticos em preto e branco. Parece um dos centros de vacinação provisórios ou repartições de registro locais, conhecidas como centros Meus Documentos, que Sobyanin construiu para simplificar a burocracia na capital.

A equipe do Veter Fall Fest, um mercado itinerante com marcas locais, nem percebeu que um centro de recrutamento havia sido construído no museu, onde o festival aconteceria, até que já era tarde demais. “Decidimos não esconder essa informação e não arriscar a segurança não só dos participantes do nosso festival, mas dos nossos milhares de leitores”, disse a revista Veter em comunicado, cancelando o evento. Ativistas antimobilização alertaram os russos para ficarem longe dos centros de recrutamento, para não serem coagidos a se alistar.

No Daguestão, as autoridades seguiram um caminho mais tradicional, repreendendo os subordinados por seus esforços entusiásticos para recrutar soldados. “Vocês são imbecis?”, gritou o chefe da república, Sergei Melikov, enquanto reproduzia um vídeo de rede social que mostrava policiais da cidade de Derbent dizendo a todos os moradores do sexo masculino para se apresentarem ao centro de alistamento local.

Para Alina, a persistência valeu a pena. Mas ela disse que não confia nas autoridades locais para consertar as futuras rodadas de mobilização. “Todo mundo está nesta luta por conta própria”, diz. “Ninguém vem ajudá-los.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Vidraça suja “

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