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Viagem: o que Guilherme Boulos e Walfrido Warde Jr. viram em Cuba?

Acossada pelo bloqueio dos Estados Unidos, a Ilha mantém os ideais da revolução

Havana: acolhedora sem ser subserviente. Foto: Thomaz Sztaneki/Istockphoto
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Caminhando por Havana Velha é possível, por instantes, sentir-se no centro de Salvador. Havana é quente, mas disciplinada, é acolhedora sem ser subserviente, é sincrética ainda que coerente, é festa, trabalho e resistência.

As construções antigas são o cenário onde o povo alegre e encantador, de maioria negra, transforma qualquer acontecimento na oportunidade para um “bailado”. É o gari aproveitando o mambo, que ecoava de um dos bares da Plaza de la Catedral, para uma dança de rosto colado com a sua vassoura. Essa é Havana. Havíamos estado lá no fim dos anos 1990 e nos surpreendemos agora com uma cidade mais agitada e com mais edifícios restaurados. Em parte, é claro, pelo aumento do turismo, aposta inevitável do governo cubano para a maior entrada de recursos na Ilha.

Os anos 90 foram especialmente duros para Cuba. Foi o chamado “período especial”, que sucedeu à queda da União Soviética e o fim do Comecon, o acordo especial de comércio entre os países do chamado bloco socialista. Cuba dependia diretamente desses parceiros para a sua sobrevivência. Desde já é importante que se diga: Cuba é um país pobre, uma ilha com 11 milhões de habitantes, sem grandes recursos naturais e com o desenvolvimento reprimido por um bloqueio econômico dos Estados Unidos que já dura 60 anos. O acordo com a União Soviética permitia a entrada de petróleo e outros bens essenciais. Por isso os anos 90 foram tão duros, com escassez de alimentos, energia elétrica e a notória crise dos balseros. O PIB caiu 35% em quatro anos e Cuba perdeu 75% de suas importações.

Ao seu modo, com dificuldades e muito espírito de sacrifício, o país foi superando a crise. O governo investiu no turismo, na formação de uma economia mista e na oferta de serviços qualificados para outros países – especialmente na área da saúde. Sem os valores patrióticos e o espírito solidário fomentados pela revolução o povo cubano não teria feito aquela travessia. Agora surgem novos desafios: Donald Trump também quer asfixiar o país, impondo semanalmente novas medidas de bloqueio. Só em 2019 foram 85 sanções. Além de não comercializar com Cuba, os EUA estabeleceram multas para qualquer transportador, cujos navios levem petróleo para a Ilha, impedindo, além disso, que os mesmos, se violarem a determinação, atraquem em portos estadunidenses, num flagrante desrespeito ao direito internacional. Isso tem criado dificuldades, entre elas a falta de combustível e de energia elétrica em alguns momentos.

O bloqueio impede ainda a aquisição de qualquer produto que tenha mais de 10% de componente originário nos EUA, o que inviabiliza, por exemplo, a compra de aviões, pois todos têm esse componente mínimo. Ou, pior, de determinados medicamentos produzidos em laboratórios americanos ou estrangeiros, mas com insumos provenientes dos EUA. Além da escassez de certos produtos, o bloqueio representa um prejuízo de 4 bilhões de dólares ao ano para Cuba. Não por acaso a ilha caribenha é condenada pela ONU, há décadas, e pela grande maioria dos países.

As restrições impostas por Washington representam um prejuízo de 4 bilhões de dólares ao ano

Conhecendo esses fatos históricos, não é surpresa que Cuba tenha dificuldades. Surpresa é que consiga resistir há 60 anos em condições tão hostis. Não apenas resistir, como também preservar as conquistas da Revolução de 1959. Antes dela, na ditadura da Fulgêncio Batista, a Ilha estava submetida a condições humilhantes, com o povo na miséria. Quase metade dos jovens estava fora da escola e o analfabetismo atingia um quarto da população. A revolução refundou o país e logrou índices de desenvolvimento incríveis.

A taxa de alfabetização atingiu 99,8%, acima da maioria das nações europeias. A maior parte dos jovens cubanos tem acesso ao Ensino Superior e a média de livros lidos por ano é uma das mais altas do mundo. Essa revolução cultural é visível no cotidiano. Qualquer cubano que você aborde – na rua, no ônibus, o taxista ou o atendente do bar – tem um nível de conhecimentos gerais e históricos incomparável ao padrão brasileiro. Uma senhora com seus 70 anos ou mais, com quem conversamos numa praça, deu uma aula sobre a história do Brasil, com direito a Tiradentes, Revolta da Chibata e Golpe de 64, narrando fatos que a maioria dos brasileiros desconhece. E ela não era professora de História…

Na saúde, as conquistas são ainda mais impressionantes. A mortalidade infantil foi reduzida a 4 crianças para cada mil nascidas vivas, índice semelhante ao da Dinamarca, superior ao dos Estados Unidos (6/mil) e 3,5 vezes melhor que o do Brasil (14/mil). A expectativa de vida é de 78,5 anos, dois anos e meio maior que a nossa. Cuba tem hoje mais de 100 mil médicos, uma das maiores proporções por habitante do mundo, o que permitiu o desenvolvimento de programas de cooperação com 65 países, onde estão 29 mil colaboradores cubanos. No Brasil, essa cooperação se dava pelo Mais Médicos, desmontado pelo governo Bolsonaro.

Guerrilha. Canel preside Cuba na fase mais dura dos bloqueios impostos por Trump. Foto: Presidencia de La República de Cuba

A redução dos níveis de violência – relacionada à igualdade social, à educação e a uma política de segurança pública baseada na inteligência – é também marcante. É possível caminhar por Havana em qualquer horário, mesmo sendo estrangeiro, e sentir-se completamente seguro. A taxa de homicídios em Cuba é de 4,7 para 100 mil habitantes, menor que a dos EUA (4,88) e mais de seis vezes menor que a nossa (30,5).

O Índice de Desenvolvimento Humano de Cuba é considerado elevado pela ONU (0,778). É o quarto maior da América Latina, atrás somente de Chile, Uruguai e Argentina. E a Ilha está entre os países menos desiguais do mundo no que se refere à disparidade de renda e patrimônio, mas também em relação ao gênero. As mulheres são 60% de todos os graduados no Ensino Superior, 53% dos integrantes do Parlamento e a igualdade salarial para o mesmo tipo de trabalho está garantida na Constituição. Sem falar na licença maternidade como direito assegurado por um ano e no direito ao aborto.

É verdade que a economia do turismo trouxe efeitos colaterais em relação à desigualdade. Como opera em dólar, gera um ganho extraordinário aos trabalhadores do setor hoteleiro, de alimentação, feiras de comércio etc. Um trabalhador desses setores ou um microinvestidor obtém um ganho muito superior ao dos trabalhadores do setor público, mesmo os mais qualificados, como médicos, engenheiros ou professores universitários. São distorções inevitáveis da estratégia de sobrevivência ao bloqueio.

Trump, que abandonou a política de aproximação iniciada por Barack Obama. Foto: Alex Wong/Getty Images/AFP

Mas todas essas conquistas da Revolução cimentaram uma unidade no povo cubano. É evidente que existem críticas ao regime e insatisfações, especialmente pela mudança geracional e o surgimento de uma juventude mais conectada com os valores de consumo a partir da internet e das redes sociais. Mesmo assim há um consenso em relação às conquistas sociais cubanas e ampla compreensão sobre o bloqueio dos EUA como fator decisivo para as dificuldades que o país vive. Se a Ilha alcançou e manteve índices de desenvolvimento tão elevados, mesmo sob fogo cerrado, é possível imaginar como seria a sociedade cubana sem o bloqueio. A ofensiva americana coloca Cuba num estado de guerra permanente e, contraditoriamente, une o povo cubano. Os valores de cooperação e solidariedade, nesse contexto, assumiram, com grande força, uma dimensão cultural, e hoje se estabelecem como uma expressão do ideário e do inconsciente coletivo cubano.

Estivemos, numa quinta-feira de noite, na reunião de um CDR, um dos Comitês de Defesa da Revolução, num bairro de Havana. Ali estavam idosos, ex-combatentes, médicos, operários, poetas e jovens, reunidos com o propósito de resolver os problemas locais e debater a situação do país. Quando nos apresentamos, todos queriam saber como estava o Brasil e alguns arriscavam análises, demonstrando um nível de informação incrível sobre a nossa situação. São milhares de CDRs espalhados por toda a Ilha, com reuniões regulares, apresentando suas demandas ao governo local e mantendo vivos os valores revolucionários de intensa participação popular em todos os assuntos.

Parece que é justamente esse o motivo pelo qual os Estados Unidos nunca invadiram militarmente Cuba, exceto quando da desastrosa tentativa em Playa Girón, em 1961, utilizando forças mercenárias. Nunca ousaram usar com Cuba a mesma política que adotaram no Iraque, no Afeganistão ou na Líbia, porque sabem que lá não enfrentariam somente um governo. Teriam que derrotar todo um povo, a exemplo do que pretendiam no Vietnã e que não deixou boas lembranças.

Cuba não é um paraíso na Terra, o que, aliás, não existe em parte alguma. Mas, com seus limites e sob a asfixia de um bloqueio injustificável e ilegal, teve conquistas sociais e culturais que não se veem em nenhum outro país da América Latina. Por isso, se nos cabe uma sugestão, bem ao gosto das mais atrasadas e obtusas forças reacionárias brasileiras, é a seguinte: Vai pra Cuba! E converse com os habitantes, veja com seus olhos e sem preconceito a situação do país – suas conquistas e suas dificuldades. E não deixe, é claro, de tomar um bom mojito na Bodeguita del Medio e alguns daiquiris no La Floridita, de acordo com o costume de Ernest Hemingway.

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