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Cinquenta anos depois do golpe contra Allende, o Chile ainda luta para punir os crimes da ditadura

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Até o fim. O cerco ao Palácio La Moneda terminou na morte de Allende (de capacete), que resistiu o quanto pode. O golpe no Chile marca profundamente a América Latina – Imagem: Orlando Lagos e Arquivo/AFP
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Cinquenta anos depois, as feridas deixadas na sociedade chilena pelo golpe de 11 de setembro de 1973 ainda estão abertas. A justiça está longe de ser feita, segredos permanecem por revelar e os corpos de muitas vítimas ainda não foram encontrados. Na quarta-feira 30, o governo do Chile anunciou uma nova iniciativa nacional para encontrar os restos mortais de 1.162 cidadãos que desapareceram sob a ditadura de Augusto Pinochet e continuam sumidos. Na maioria dos casos, o melhor que suas famílias podem esperar são fragmentos ou vestígios de DNA.

Depois de destituir Salvador ­Allende, socialista democraticamente eleito, ­Pinochet prendeu opositores, ativistas sociais e estudantes no Estádio Nacional de Santiago e outros centros de detenção improvisados, onde cerca de 30 mil opositores foram torturados e mais de 2,2 mil, executados. O corpo de Allende foi retirado dos destroços bombardeados do palácio presidencial de La Moneda. Geralmente, se pensa que ele se matou para não ser capturado por soldados leais a Pinochet, o comandante das forças armadas que ele nomeara algumas semanas antes.

Quase 1,5 mil outros chilenos simplesmente desapareceram e, desde o fim da junta militar, em 1990, apenas 307 foram identificados e seus restos mortais devolvidos às famílias. Prevendo o acerto de contas que viria, Pinochet ordenou que os corpos dos executados fossem desenterrados e jogados no mar ou na cratera de um vulcão. Os investigadores esperam agora que a tecnologia moderna ajude a identificar locais de massacres e cemitérios temporários que ainda possam conter vestígios dos mortos. Ariel ­Dorfman trabalhava como assessor cultural e de imprensa no La Moneda e teve sorte de sobreviver. A maior parte do pessoal de ­Allende foi executada nos primeiros dias após o golpe. “Foi uma tragédia para o Chile, para a América Latina e para o mundo, porque estávamos tentando abrir um caminho para uma sociedade mais justa, radical e sem violência”, disse Dorfman, romancista, dramaturgo e acadêmico.

O regime Pinochet destruiu muitas provas, mas os processos contra torturadores prosseguem

Há julgamentos em curso, num último esforço de prestação de contas antes da morte por velhice dos perpetradores. Na segunda-feira 28, sete ex-soldados com idades entre 73 e 85 anos foram finalmente presos depois de a câmara criminal do Supremo Tribunal chileno ter mantido suas condenações pelo assassinato de Victor Jara, célebre compositor e cantor popular apoiador de Allende que foi torturado e, depois, baleado 44 vezes.

Muitos detalhes do golpe de 1973 e da ditadura que se seguiu permanecem desconhecidos. Pinochet e a junta foram eficientes quando se tratou de destruir provas, e os Estados Unidos têm relutado em desclassificar seus próprios registros, que surgiram aos poucos ao longo dos anos. Sob pressão do atual presidente do ­Chile, Gabriel Boric, ex-ativista estudantil de 37 anos, e de democratas progressistas em Washington, como Alexandria Ocasio-Cortez, os EUA desclassificaram dois novos documentos: briefings de inteligência presidenciais dados a Richard ­Nixon no dia do golpe e três dias antes. Era difícil entender por que eles foram retidos por tanto tempo. Confirmavam o que tinha sido geralmente estabelecido: que a CIA não tinha encenado diretamente o golpe de 11 de setembro. O relatório diário presidencial de 8 de setembro inclui relatos de uma conspiração levada a cabo por oficiais da Marinha, mas acrescenta: “Não há provas de um plano de golpe das três forças. Se os cabeças quentes da Marinha agirem na crença de que receberão automaticamente apoio de outras forças, poderão ficar isolados”, disse o responsável pela inteligência a Nixon.

No próprio dia do golpe, Nixon foi informado de que, embora algumas unidades do Exército parecessem ter aderido ao esforço, “ainda podem não ter um plano eficazmente coordenado que capitalize a oposição civil generalizada”. ­Jack Devine, que trabalhava como oficial clandestino da CIA no Chile em 1973, estava almoçando num restaurante italiano, em Santiago, no dia 9 de setembro, quando recebeu uma mensagem para ligar para casa. Foi sua mulher quem lhe disse que haveria um golpe.

Queima de arquivo. Pinochet cuidou de destruir as provas das atrocidades – Imagem: Arquivo/AFP

Uma das fontes de Devine, um empresário e ex-oficial da Marinha, estava deixando o país e não conseguiu encontrar o homem da CIA, por isso foi à sua casa e disse à mulher dele para transmitir sua denúncia: “Os militares decidiram agir. Isso vai acontecer no dia 11 de setembro”. Devine disse a The Observer: “Esse é o primeiro sinal claro de que um golpe estava por vir, apenas alguns dias antes do previsto. Fomos pegos de surpresa. Essa é a primeira evidência de que algo iria acontecer. E muitos ainda não acreditavam nisso em Washington e na CIA”.

Não há dúvida, contudo, de que os EUA ajudaram a preparar o terreno para a tomada militar. Desde a eleição de ­Allende, em 4 de setembro de 1970, à frente da aliança Unidade Popular, a Casa Branca, liderada pelo conselheiro de segurança nacional de Nixon, Henry Kissinger, começou a conspirar para se livrar dele. A CIA planejou um golpe de Estado no mês seguinte, antes mesmo de Allende tomar posse. Os espiões dos Estados Unidos encontraram oficiais dispostos a isso e lhes forneceram armas, dinheiro e garantias de apoio a um governo militar. A conspiração levou ao assassinato do comandante-em-chefe, René Schneider, que apoiava o novo presidente, mas não conseguiu derrubar Allende quando os conspiradores militares se retiraram.

Numa conversa telefônica em 23 de outubro, Kissinger disse a Nixon que tinha havido “uma virada para pior”. “O próximo passo deveria ter sido uma tomada do governo, mas isso não aconteceu”, disse ele, descrevendo os militares chilenos como “um grupo bastante incompetente”. “Eles estão sem prática”, respondeu Nixon.

Menos da metade dos chilenos, 42%, desaprova o programa econômico ultraliberal da era Pinochet

Após o fracasso do golpe de 1970, ­Devine disse: “Nixon enviou instruções específicas à CIA para que não houvesse mais conspirações golpistas”. A administração dos EUA concentrou-se, em vez disso, em minar o governo Allende, que tinha sido eleito por uma pequena margem e enfrentava uma oposição interna substancial. Washington se coordenou com seus aliados na América Latina para bloquear o acesso do Chile ao financiamento internacional, persuadiu empresas americanas a abandonar o Chile, manipulou o preço global do cobre, seu principal produto de exportação, e ajudou a fomentar greves dentro do país.

A administração Nixon também foi rápida em apoiar a junta. Quando diplomatas norte-americanos, chocados, enviaram relatórios sobre o massacre que se seguiu ao golpe, Kissinger disse a seus assessores: “Penso que deveríamos compreender a nossa política. Por mais desagradável que ele seja, este governo é melhor para nós do que Allende”.

Pinochet encontrou outro amigo poderoso no cenário mundial, quando ­Margaret Thatcher foi eleita na Grã-Bretanha em 1979. Ela restaurou os créditos à exportação do Chile e retirou o embargo de armas ao regime, vendendo-lhe caças e treinando suas tropas. Uma série de ministros conservadores visitou o Chile, admirando a elevada taxa de crescimento econômico e a adoção sincera da política monetária absolutista exaltada por Milton Friedman na Universidade de Chicago. Um grupo de economistas chilenos que estudaram lá, conhecidos como Chicago Boys, assumiram altos cargos no governo Pinochet, e o país tornou-se um teste para as políticas de privatização, desregulamentação e controle da oferta monetária. Fatores sociais complicadores, como os sindicatos e a resistência popular, foram retirados de cena.

“O golpe chileno foi um triunfo do movimento anticomunista nos Estados Unidos e na América Latina. Não se pode ignorar o fato de que ele levou à derrota de governos democráticos e progressistas em toda a região”, disse John Dinges, que viveu os primeiros anos violentos da era Pinochet como um dos poucos jornalistas norte-americanos a permanecer no país após o golpe.

QG. A CIA agiu desde o primeiro dia da posse para desestabilizar o governo Allende, de todas as formas possíveis – Imagem: OHB/Langley Academy

O regime de Pinochet coordenou-se com outros governos militares na Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Brasil para eliminar esquerdistas e ativistas sociais na Operação Condor, um massacre concertado em toda a região. Teve ajuda dos Estados Unidos, na área de apoio técnico, formação e ajuda militar, das administrações Ford, Carter e Reagan, tudo em nome da luta contra o comunismo.

O legado duradouro do golpe em todo o mundo foi definido principalmente pela reação internacional à sua chocante crueldade. Galvanizou o movimento pelos direitos humanos na Europa e nos Estados Unidos. Em Washington, o envolvimento dos EUA chocou políticos como o senador Frank Church, que supervisionou as primeiras audiências no Congresso sobre as atividades secretas da CIA, o que acabou por conduzir a restrições nas suas futuras operações.

O martírio de Allende e a sua experiência no socialismo democrático inspiraram uma geração de ativistas políticos de esquerda em todo o mundo. Dorfman argumenta que o governo Allende e sua destituição mudaram o curso da política progressista. “Havia lições a aprender, e elas perduraram: a necessidade de vastas coligações para efetuar essa mudança estrutural e a forma como o sofrimento do Chile criou uma consciência sobre as violações dos direitos humanos”, disse o ativista, que escreveu uma avaliação do legado de Allende na New York Review of Books e um romance sobre a morte de Allende, The Suicide Museum.

No Chile, o legado do golpe ainda está em discussão. Uma recente sondagem revelou que apenas 42% dos chilenos pensavam que a ditadura tinha destruído a democracia, em comparação com 36% que afirmavam que o programa tinha salvado o país do marxismo. Peter Kornbluh, analista sênior do Arquivo de Segurança Nacional em Washington, um dos cabeças na pressão sobre o governo para desclassificar seus documentos a respeito do golpe, alertou que o negacionismo sobre as atrocidades da era Pinochet estava se fortalecendo, juntamente com a ascensão da extrema-direita. “É uma Pedra da Roseta para a discussão sobre a ameaça do autoritarismo versus a santidade da democracia”, disse Kornbluh, autor de um livro baseado nos documentos desclassificados até agora, The Pinochet File. “E o Chile está tendo esse debate sobre o seu passado porque vem lidando com essa ameaça neste momento. E vários outros países, incluindo os Estados Unidos e nações da Europa, estão enfrentando o mesmo problema. O golpe no Chile foi realmente a repressão de muitas esperanças e sonhos em todo o mundo, e acho que essa dinâmica ainda ressoa e é relevante hoje.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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