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Uma ponte a menos

O bombardeio na Crimeia marca a escalada recente na guerra da Ucrânia e impõe nova barreira ao diálogo

Os russos não demoraram a responder à destruição da ponte - Imagem: AFP
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Quando um amanhecer frio de outono irrompeu no sábado 8 sobre a ponte de Kerch, ligação da Crimeia ocupada pela Rússia ao continente, o tráfego rodoviário estava leve. Com o céu a ficar rosa, alguns carros e vários caminhões atravessavam a ponte de, aproximadamente, 19 quilômetros de comprimento e que antes da invasão em grande escala pelos russos era usada por 15 mil carros por dia. Um pouco distante e acima dos veículos, um longo trem de carga com alguns vagões de combustível também se dirigia para a península, cruzando a ponte ferroviária paralela.

A explosão devastadora ocorreu às 6h07 da manhã (0h07 em Brasília). Imagens de câmeras de segurança postadas nos canais russos do Telegram mostraram um carro e um caminhão a se mover quase juntos quando uma grande bola de fogo os envolveu, misturada com uma tempestade de fragmentos incandescentes a girar ao redor. Na linha de trem acima, a poderosa onda da explosão rompeu os tanques de combustível e liberou uma cascata de chamas, enquanto a pista da estrada se dobrava e, por fim, desabava. Um dos suportes, com seus pilares duplos de concreto armado e pedestal, aparentemente evaporou.

De acordo com autoridades russas, a causa da explosão foi um caminhão-bomba, afirmação ainda não confirmada e recebida com ceticismo por alguns especialistas, com o centro da explosão na pista da ponte rodoviária no sentido da Ucrânia. Em poucos minutos, imagens circularam nos canais de rede social ucranianos e russos e logo foram postadas em todo o mundo.

Ameaçado há muito tempo, o odiado símbolo de 4 bilhões de dólares da ocupação da Crimeia por Moscou – que a Rússia se vangloriava de ser impossível de atacar – foi explodido. O simbolismo do momento, um dia após o aniversário de 70 anos do presidente russo, Vladimir Putin, e pouco mais de uma semana depois de anunciar a anexação ilegal de mais quatro territórios ucranianos, em meio a uma enorme pompa em Moscou, não passou despercebido a ninguém. Em um comunicado, o comitê antiterrorismo do país disse que a explosão aconteceu num caminhão de carga e fez com que sete vagões-tanque se incendiassem. Sergei Aksyonov, governador da Crimeia, disse nas redes sociais que a ponte rodoviária ainda está intacta em uma direção, embora o tráfego tenha sido suspenso enquanto os danos são avaliados. Mensagens que vazaram de autoridades russas para a mídia local, obtidas pelo site de notícias Meduza, salientaram, no entanto, que os meios de comunicação estatais foram instruídos a dizer que a ponte “não foi destruída, apenas danificada”.

Em Kiev, onde oficiais militares se recusaram a comentar, o clima era uma mistura de exultação e questionamento sobre como a Rússia responderia, principalmente após sua recente postura nuclear. Mykhailo Podolyak, conselheiro da presidência ucraniana, pareceu sugerir a responsabilidade de Kiev, tuitando obliquamente: “Crimeia, a ponte, o começo. Tudo ilegal deve ser destruído, tudo roubado deve ser devolvido à Ucrânia, tudo o que pertence à ocupação russa deve ser expelido”. Por sua vez, o chefe do conselho de segurança e defesa nacional da Ucrânia, Oleksiy Danilov, postou um vídeo da ponte em chamas nas redes sociais ao lado de um vídeo de Marilyn Monroe cantando Parabéns, Senhor Presidente.

Nota de CartaCapital: a resposta não tardou. Na segunda-feira 10, após longo recesso, os russos voltaram a bombardear Kiev, no mais longo e intenso ataque desde a primeira semana do conflito. Cerca de 80 mísseis foram disparados contra a capital ucraniana, provocando um saldo de dez mortos e 60 feridos. “A manhã é difícil”, afirmou o presidente Volodymyr Zelensky, no primeiro pronunciamento após o bombardeio. “Procuram o pânico e o caos, querem destruir o nosso sistema de energia. Escolheram especificamente o horário e os locais para causar mais danos. Fiquem nos abrigos hoje.”

Com 19 quilômetros de comprimento e mais alta que a Estátua da Liberdade, a ponte de Kerch era a joia da coroa dos projetos de infraestrutura de Putin, descritos pela mídia russa como a “construção do século”, destinada a reificar a posse da Crimeia pela Rússia. Quando Putin inaugurou a obra, em 15 de maio de 2018, na direção de um caminhão Kamaz laranja, ele se gabou: “Em diferentes épocas históricas, mesmo sob os sacerdotes czares, as pessoas sonhavam em construir esta ponte. Então voltaram a essa ideia nos anos 1930, 40, 50. E, finalmente, graças ao seu trabalho e talento, o milagre aconteceu”.

Moscou voltou a bombardear Kiev em resposta ao ataque a Kerch

Fortemente defendida desde o início da invasão em larga escala da Ucrânia pela Rússia, a ponte era considerada importante o suficiente para Moscou alertar sobre represálias se fosse visada, como um elo de transporte fundamental de equipamentos militares para soldados russos que lutam na Ucrânia, especialmente no sul, bem como para o transporte de tropas para as linhas de frente.

Não é simplesmente o fato de ser a ponte de Putin que sublinha o simbolismo. A explosão também tem consequências ­reais para a guerra do ponto de vista do Kremlin, pois ocorreu logo após uma série de derrotas humilhantes nas frentes leste e sul que viram retiradas russas em larga escala. Também ocorre em meio a crescentes ameaças nucleares de Moscou e apenas uma semana depois de Putin assinar um decreto no qual afirma ilegalmente a anexação de quatro províncias ucranianas.

Putin se divide entre as cobranças dos nacionalistas e a insatisfação interna crescente – Imagem: Alexey Danichev/AFP

É uma importante linha de abas­te­ci­men­to logístico não apenas para as forças russas na Crimeia ocupada, mas para outras partes do sul da Ucrânia, onde as tropas de Putin estão em retirada nos últimos dias. Ela é a principal linha de abastecimento da Rússia continental, incluindo uma ferrovia para Melitopol, e está sob crescente pressão ucraniana, com greves em um depósito ferroviário algumas horas antes.

A importância do ataque não passou despercebida aos moradores da Crimeia, que, à medida que as notícias se espalhavam, correram para os postos de gasolina para abastecer seus carros, pois todos os trens e ônibus foram cancelados. Embora existam outras maneiras de abastecer a Crimeia, inclusive por meio de portos, os danos à ponte são extremamente importantes para um local que até muito recentemente era visto pela Rússia como fora do alcance da Ucrânia.

Isso mudou nos últimos meses. Após um ataque à base aérea naval de Saky em agosto, turistas russos fugiram das praias da Crimeia e provocaram enormes engarrafamentos na Ponte de Kerch. Algumas forças navais russas igualmente parecem ter sido discretamente redistribuídas à medida que a guerra se aproximava.

Como Moscou responde é a grande questão, mas que tem se tornado cada vez mais poderosa nas últimas semanas, à medida que a Ucrânia pressionou com sucesso sua contraofensiva e em meio à crescente inquietação das elites e de comentaristas russos sobre a condução da guerra por Putin. Em poucas horas, os radicais russos pediam ataques à infraestrutura crítica ucraniana e aos “centros de tomada de decisão”. O oligarca russo Konstantin Malofeev, apoiador de Putin e nacionalista radical, postou uma foto em seus canais de rede social de cinco pontes ucranianas com uma legenda dirigida à liderança militar da Rússia: “Sergei Shoigu e Valery Gerasimov. Não percam”.

Os nacionalistas russos cobram resposta firme e imediata do Kremlin, acuado pelo avanço das tropas ucranianas

O Kremlin enfrentava críticas sem precedentes de nacionalistas e blogueiros pró-guerra, que censuravam sua liderança pelos recentes fracassos militares do Exército na Ucrânia. Zakhar ­Prilepin, romancista russo conservador e veterano de guerra na Ucrânia, pediu às autoridades que anunciem uma mobilização econômica em grande escala. “Isso nos dá uma chance. A mobilização em todas as esferas deve finalmente começar. Em tudo, eu digo em todas as esferas, e não estou falando apenas de soldados indo para o front”, escreveu no Telegram. Outros blogueiros pró-Rússia apontaram para um discurso de julho do ex-presidente da Rússia Dmitry Medvedev, no qual ele garantiu que um ataque à Crimeia desencadearia uma resposta “apocalíptica”. “E agora, Dmitry Anatolyevich (Medvedev)?”, escreveu Aleksandr Kots, jornalista pró-Kremlin que viaja com o exército russo.

Diante da pressão renovada da direita, parece certo que Putin agora será forçado a encontrar uma resposta para o que parece ser um dos incidentes mais embaraçosos desde o início da guerra. “A confiança de que Putin sabe o que faz é cada vez menor”, disse Anton Barbashin, analista político do site de notícias ­Riddle. “Ou Putin responde ou corre o risco de corroer ainda mais sua legitimidade entre os falcões na Rússia.” Na primeira reação imediata à explosão da ponte, o ­Kremlin anunciou um novo comandante-geral das forças na Ucrânia, Sergei Surovikin, oficial com reputação de brutalidade e corrupção, cuja nomeação será bem recebida pelos radicais. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Uma ponte a menos “

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