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Uma esmola, por favor

A sobrevida política do celebrado Javier Milei depende do socorro financeiro de Washington

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Ô, moço, me ajuda aí. Milei, o herói ultraliberal, foi obrigado a passar o chapéu – Imagem: Daniel Duarte/AFP
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E lá se esvai outra miragem ­neo­liberal latino-americana. Antes de completar dois anos de mandato, Javier Milei, elevado ao panteão de ícone libertário dos países em desenvolvimento, celebrado em prosa e verso nas mesas de operações financeiras no mundo ocidental por sua “ousada e bem-sucedida” política econômica, acaba de repetir a sina de todos os antecessores, tanto na Argentina quanto na América Latina de modo geral, que empunharam a cartilha do ajuste à custa dos mais pobres. Para ganhar sobrevida eleitoral e diante da ameaça de derretimento dos mercados, Milei viu-se obrigado a passar o chapéu em Washington.

Na terça-feira 23, nos bastidores da Assembleia-Geral da ONU, Donald Trump recebeu o aliado argentino. ­Milei talvez esperasse um polpudo cheque, mas, durante o encontro, recebeu apenas uma cópia em tamanho gigante de uma mensagem de apoio publicada pelo republicano na rede Truth Social, presente que poderá pendurar na parede do gabinete, além de renovadas promessas de socorro. “Vamos ajudá-los. Não acho que precisem de um resgate. Scott está trabalhando com o país deles para que consigam boas dívidas e tudo o que é necessário para tornar a Argentina grande novamente”, declarou o norte-americano.

Trump referia-se a Scott Bessent, secretário do Tesouro dos EUA. No dia anterior, Bessent havia publicado uma mensagem que animou o combalido mercado de títulos de Buenos Aires. “A Argentina é uma aliada consistentemente importante dos Estados Unidos na América Latina, e o Tesouro dos Estados Unidos está disposto a fazer o que for necessário para apoiar a Argentina.” Todas as possibilidades estão abertas: compras de dívida pública em dólares, negociações diretas de moeda estrangeira, empréstimos do Banco Mundial e semelhantes ou swaps cambiais. Em outras palavras, um aprofundamento da trajetória de endividamento seguida por Luis Caputo, ministro da Economia argentino.

O anúncio de Bessent impediu a materialização do desastre esperado pelos analistas financeiros na segunda-feira 22. Nos dias anteriores, o dólar havia disparado e o risco-país ultrapassado a marca de 1,2 mil pontos. O cálculo em Wall Street e em Buenos Aires era de que, se o Banco Central continuasse a vender dólares, as reservas seriam diluídas e o risco de calote da dívida externa aumentaria exponecialmente. Ao contrário do Brasil, que acumulou reservas cambiais expressivas e nunca mais teve de recorrer a empréstimos do Fundo Monetário Internacional, a Argentina, que também havia se desvencilhado da instituição em 2005, por obra de ­Néstor Kirchner, voltou a bater à porta do FMI em 2018, graças à intervenção do mesmo Trump em favor do então presidente Mauricio Macri, aliado de Milei.

“Vamos ajudá-los”, afirmou Trump

Antes das declarações de Bessent e Trump, o novo embaixador dos EUA na Argentina, Peter Lamelas, havia declarado em Washington, após ser confirmado pelo Senado, que igualmente apoiaria Milei nas eleições de meio de mandato. Em 26 de outubro, os argentinos irão às urnas para renovar a metade da Câmara dos Deputados e um terço do Senado.

Na quarta-feira 24, Bessent deu forma a alguns dos anúncios do socorro a Milei “para evitar volatilidade excessiva”, embora não tenha definido prazos. O Tesouro dos EUA, garantiu o secretário, “está preparado” para comprar títulos argentinos e conceder, se necessário, um empréstimo stand-by significativo por meio do Fundo de Estabilização Cambial. O mecanismo foi usado em 1994 para salvar as finanças do México, embora este já fosse um parceiro dos Estados Unidos no Nafta e não um país subordinado a Washington como a Argentina, status que vigora desde a desistência de Milei de unir-se aos BRICS e alinhar-se a Washington e Tel-Aviv. Alejo Czerwonko, chefe de investimentos em mercados emergentes da União de Bancos Suíços, afirmou que, “se confirmado, o acordo estaria entre os episódios mais significativos de apoio do Tesouro dos EUA na história dos mercados emergentes”.

Milei dará algo em troca de tanta generosidade? Analistas consultados por CartaCapital na Argentina e nos Estados Unidos não se surpreenderiam se o acordo incluir cláusulas secretas ou confidenciais. Nos últimos dois anos, o Comando Sul, que supervisiona a América Latina para as Forças Armadas norte-americanas, expressou repetidamente seu interesse no valor estratégico da Terra do Fogo, no extremo-sul argentino. A comandante Laura Richardson visitou Ushuaia, capital da Terra do Fogo, em companhia de Milei. E, em agosto, seu sucessor, Alvin Holsey, viajou ao ­país. Tanto Richardson quanto Holsey citaram a Rússia e a China como “perigos” e destacaram a importância geopolítica da região, por conta da proximidade com as passagens bioceânicas entre o Atlântico e o Pacífico e a localização estratégica em relação à Antártida. O estabelecimento de uma base norte-americana está entre as possibilidades. O Reino Unido decidiu, por prevenção, redesenhar a base militar nas Ilhas Malvinas e aumentar seu poder de fogo.

O alinhamento da Argentina é tal que, na Assembleia-Geral da ONU, ela esteve entre os dez países que votaram contra o reconhecimento pleno do Estado palestino. Os EUA e Israel lideraram a votação. Da América do Sul, apenas os representantes argentinos e paraguaios se perfilaram ao lado de Trump e ­Benjamin Netanyahu. •


*Jornalista argentino, colunista do jornal Página/12, codiretor do site analítico Y ahora qué? (E agora?) e comentarista do programa de tevê QR.

Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma esmola, por favor’

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