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Ultradireita fica longe de seus objetivos nas eleições europeias

Os liberais ganharam espaço e vão dividir o poder com socialistas e conservadores. E isso não afeta o projeto europeu

Foto: Bertrand Guay/AFP
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No domingo 26, a Europa decidiu medir o tamanho da sua extrema-direita. E o resultado das urnas não pode deixar de ser visto como uma decepção para os seus ativistas – não houve nem terremoto nem onda eleitoral. Ganharam na França, é verdade, mas é preciso lembrar que já haviam ganho as últimas eleições, cinco anos atrás, e obtiveram agora uma menor porcentagem de votos. A vitória na França, portanto, não se constitui uma surpresa nem pode ser considerada grande. Aliás, o que parece é que essas eleições europeias se transformaram numa espécie de maldição para o partido de Marine Le Pen – ganham estas e perdem todas as outras. A explicação tem a ver com dois fenômenos: o isolamento político da legenda e o método majoritário em dois turnos nas eleições legislativas e nas presidenciais. No segundo turno, no momento decisivo, todos se unem contra a extrema-direita. Os franceses chamam a isso de pacto republicano – uma espécie de “Ela não” à francesa.

Ganharam também na Itália e, aí sim, colheram a sua vitória mais emblemática. Não só pela primeira vez um partido declaradamente antieuropeu vence uma eleição no país, como parece que Steve Bannon encontrou em Matteo Salvini o chefe para o seu movimento internacional. A Liga duplicou os seus votos e passou a primeiro partido. Ou me engano muito ou isso vai obrigar a legenda Cinco Estrelas (parceira da Liga na coligação governamental) a adotar cada vez mais uma atitude pró-europeia e aproximar-se dos sociais-democratas, que ficaram em segundo lugar. Essas eleições têm uma consequência – a Europa transformou-se numa questão central. Se uma parte do país celebra a escolha do chefe contra a Europa, o outro país, italiano, que é profundamente europeu, encontrará uma maneira de se lhe opor. A seguir com atenção!

Mas não basta. Não basta de todo. É certo que os ultradireitistas sobem e ganham assentos parlamentares, mas ficam longe, muito longe dos seus objetivos. Não, não foi “um feito histórico”, como proclamava Le Pen, nem passaram “da oitava posição para a terceira ou talvez segunda posição”, como antevia Salvini. Ficaram na sexta posição, com cerca de uma centena de deputados e muito longe do propósito a que aspiravam: ter um terço do Parlamento para condicionar a legislação e bloquear nomeações nas instâncias europeias. Fracassado esse objetivo, ressurge o fantasma da irrelevância e do isolamento. A crise dos refugiados e a crise financeira não foram suficientes. Pior, a partir daqui pode ser sempre uma descendente.

A Liga de Salvini avança sobre os eleitores do parceiro Cinco Estrelas. E a Frente de Le Pen consegue menos apoio. (Foto: Miguel Medina/AFP)

Um sinal importante: os europeus foram com mais entusiasmo às urnas. A votação excedeu os 50% de participação, 10 pontos porcentuais acima do índice registrado nas últimas eleições. Se bem vejo as coisas, essa foi a primeira vez que vi europeus saírem de casa para irem às urnas defender o ideal europeu. Há mais de 30 anos ouço dizer que a democracia europeia não existe exatamente porque não há povo europeu. Pois bem, ainda que timidamente, essa parece ter sido a primeira vez que essa identidade europeia decidiu manifestar-se – para se opor a quem a quer destruir. A Europa pode ainda ser pouco como projeto político de integração, mas há quem ache que vale a pena defendê-la.

Para quem almejava conquistar um terço das vagas no Parlamento, os resultados foram frustrantes. O terremoto não sacudiu o continente

Regressemos à aritmética eleitoral para destacar o ponto crítico: o bloco de partidos totalmente empenhados no projeto político europeu sai dessas eleições com pequenas perdas. A maioria dos 474 lugares de que dispunham passa para uma maioria de 435 – o que corresponde a 60% dos assentos parlamentares. É verdade que os dois partidos fundadores do projeto europeu – o Democrata-Cristão e o Social-Democrata – perderam a maioria parlamentar de que há muito dispunham. Os liberais, que, com uma subida significativa, se afirmam como terceira força política, são, no entanto, tão europeístas quanto os primeiros (em alguns casos mais que os outros). Vai ser preciso agora negociar a três, não a dois, como antes – mas duvido que esse fato enfraqueça a Europa.

Os europeus atenderam ao chamado eleitoral. (Foto: Attila Kisebendk/AFP)

Depois, os verdes. O crescimento dos ecologistas é uma novidade eleitoral que ultrapassa a mera relação de forças. O combate às mudanças climáticas é não só um dos pontos fortes da agenda política europeia, mas também, e talvez sobretudo, uma das marcas mais importantes da sua influência no mundo. A liderança ambiental constitui-se assim como um dos mais importantes ativos políticos na afirmação europeia no mundo. Ponto-final na história: os europeus não acreditam que o aquecimento global seja um embuste e querem vê-lo ser tratado como um dos mais sérios perigos à estabilidade mundial.

Voltemos ao princípio: a questão central dessas eleições sempre foi saber quanto vale a extrema-direita depois da crise financeira e principalmente depois da crise dos refugiados. Para alguns, a questão seria meramente simbólica. Fosse qual fosse o número de deputados eleitos, isso não representaria uma mudança real e concreta na política europeia. Não creio. Esse discurso defensivo é um erro – as questões políticas decisivas são sempre simbólicas. Elas anunciam o que aí vem. O que aconteceu nessas eleições foi o malogro de uma agenda política: muros, migrações, fechamento de mercados, Estado de Direito autoritário. A “democracia iliberal”, do primeiro-ministro Viktor Orbán, foi derrotada. O que sai vitorioso é o regresso da Europa ao melhor da sua história: a coesão, o modelo social europeu, a Europa de igualdade e de paz, o respeito pelo direito internacional.

Os liberais ganharam espaço e vão dividir o poder com socialistas e conservadores. Mas isso não afeta o projeto europeu

Agora que o povo falou, chega à altura de governar e de negociar. A extrema-direita vai para o isolamento e os três maiores partidos europeus – conservador, social-democrata e liberal – vão tomar decisões quanto às lideranças das instituições europeias. Coisa de velha política. Velha política que entende as eleições não como critério de razão, mas de legitimidade. Velha política que entende a democracia como o reino do diálogo e do compromisso. Velha política que aceita que a melhor sociedade é a pluralista – que tenha vários e diversos centros de poder e, ainda por cima, conflitantes.

Velha política que, com profunda sensibilidade pelo seu significado, não aceita que os símbolos religiosos sejam instrumentalizados em favor de uma ordem vinda do além – nem pastores congoleses, nem Jesus, nem goiabeiras, nem azul que deve ser azul nem rosa que deve ser rosa. Velha política que já passou por muito e que se recusa a organizar a vida social segundo um plano unitário e, ao contrário, vê com bons olhos a diversidade, a dissidência e a pluralidade – numa palavra, a balbúrdia.

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