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Tunísia: entre a democracia e o terror

País tem sucesso com os procedimentos democráticos, mas clérigos radicais e injustiça social se combinam para fomentar o extremismo

Bandeira da Tunísia estendida em praia vazia próxima à do hotel Marhaba, em 27 de junho, um dia depois do atentado
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Em toda e qualquer análise a respeito da democratização do Oriente Médio, a Tunísia é apontada como um caso de sucesso. O país realizou dois conjuntos de eleições gerais, viu o governo trocar de mãos de forma pacífica e aprovou uma Constituição progressista em 2014. Ao mesmo tempo, a Tunísia se tornou palco de atentados terroristas.

Em março, 21 turistas estrangeiros e um policial foram mortos no Museu Bardo, em Túnis, a capital do país. Na sexta-feira 26, 39 pessoas, a maior parte turistas, foram assassinadas no hotel Riu Imperial Marhaba, no balneário de Sousse, no nordeste do país. Reivindicado pelo Estado Islâmico, o ataque simboliza o dilema que a Tunísia enfrenta com sua abertura democrática: como conciliá-la com o espaço aberto para o islã político, uma ideologia que em seu ponto mais extremo tem justamente os responsáveis pelos ataques?

A resposta para essa pergunta passa pela história. A Tunísia destoa de seus vizinhos árabes por ser um país onde a separação entre religião e Estado (o secularismo) é ampla e apreciada por grandes contingentes da população. Tal característica deriva dos intensos esforços dos dois últimos ditadores tunisianos, Habib Bourguiba e Zine El Abidine Ben Ali, para reduzir a influência da religião no Estado.

Bourguiba instituiu um código de status pessoal que iguala direitos de homens e mulheres, proibiu véus muçulmanos em prédios públicos e fez da Tunísia um dos três países árabes cujo fim de semana coincide com o do Ocidente. Em 1964, num gesto simbólico ainda bastante lembrado, Bourguiba chocou muitos ao violar o jejum do Ramadã durante o dia (o que não é permitido pela religião) ao tomar um copo de suco de laranja em rede nacional.

Ben Ali, por sua vez, liderou uma das ditaduras mais totalitárias do mundo árabe e dizimou o Ennahda, o principal dos partidos tunisianos adeptos do islã político. Além de uma série de assassinatos, torturas e inúmeros abusos, Bourguiba e Ben Ali criaram uma Tunísia na qual o islã não tinha um papel tão proeminente na vida pública, como em outros países da região. 

A secularização forçada, entretanto, se provou frágil quando o autoritarismo que a sustentava ruiu. Após a queda de Ben Ali, concretizada em 14 de janeiro de 2011, quando este fugiu para a Arábia Saudita, a religiosidade da sociedade tunisiana emergiu. Os ultraconservadores salafistas se organizaram, mulheres protestaram pelo direito de usar o niqab (o véu que deixa apenas os olhos de fora), muitos homens passaram a usar abayas (uma veste tradicional) e as mesquitas ganharam papel de destaque nas discussões políticas e sociais. O Ennahda foi o grande beneficiado. Em parte porque era bem organizado e não sofria com o peso de ser ligado ao antigo regime, como eram outros partidos. Mas também porque o islã político tinha apelo para uma sociedade submetida a décadas de alienação cultural pelos ditadores. Assim, o partido ganhou as eleições de 2011. 

A chegada do Ennahda ao poder dividiu a sociedade tunisiana. Da mesma forma como sua irmã ideológica, a Irmandade Muçulmana do Egito, o Ennahda se viu em uma posição na qual precisaria conciliar as posições incompatíveis de sua base de apoio com as do establishment político. No campo da transição administrativa, o Ennahda era pressionado por setores revolucionários para afastar do governo os tecnocratas ligados a Ben Ali, assim como a excluir da política os integrantes do antigo regime.

No campo político-religioso, o partido era compelido por sua base, e também pelos salafistas, a defender a islamização das leis. Neste cenário, o governo do Ennahda foi engolfado pela tensão política, provocada pelo choque entre seus apoiadores e os setores seculares. A tensão política no país explodiu em 2013, com os assassinatos de dois líderes esquerdistas, Mohamed Brahmi e Chokri Belaid, executados por uma célula jihadista.

Os crimes políticos colocaram o Ennahda na berlinda. Ainda que o partido não comungue do radicalismo dos jihadistas ou mesmo dos salafistas, a sigla foi responsabilizada pelas mortes. Temendo o destino da Irmandade Muçulmana, derrubada do poder pelas Forças Armadas do Egito e posteriormente submetida a uma intensa perseguição, o Ennahda decidiu fazer concessões. 

Primeiro, deixou o governo, abrindo espaço para um gabinete apartidário e tecnocrata. Depois, votou a favor de uma Constituição sem a sharia (a lei islâmica) como fonte de legislação, que não prevê punições para a blasfêmia e que determina igualdade total entre homens e mulheres (e não complementaridade, como pregam muitos de seus adeptos). Além disso, após ficar em segundo lugar nas eleições parlamentares de outubro passado, o Ennahda aceitou fazer parte do governo liderado pelo partido secular Nidaa Tounes com um número ínfimo de cargos. Para os eleitores mais radicais do Ennahda, tais decisões não foram apenas concessões em nome da estabilidade da Tunísia. Elas significam, avaliam, o abandono do caráter islâmico do partido e a submissão diante do secularismo. 

Tunísia - terrorismo Homem beija a bandeira da Tunísia na praia onde ocorreu o atentado em 26 de junho (Foto: Kenzo Tribouillard / AFP)

A derrocada do Ennahda criou um vácuo no vasto espectro ideológico do islã político, e ele foi preenchido por quem estava à espreita: o Estado Islâmico. A ideologia radical do grupo tem ganhado espaço nas mesquitas tunisianas, muitas fora do controle do Estado, e atraído quantidades significativas de adeptos. Desde a criação do califado, cerca de 3 mil tunisianos se juntaram à organização que atua na Síria e no Iraque, transformando a Tunísia na principal fornecedora de recrutas para o ISIS. Muitos outros decidem atuar em seu próprio país.

É o caso de Seifeddine Rezgui, o terrorista que matou 39 pessoas em Sousse na semana passada. É, também, o caso de Yassine Labidi e Saber Khachnaoui, responsáveis pelo atentado no Museu Bardo. Labidi e Khachnaoui faziam parte de uma célula terrorista chamada Okba ibn Nafaa, que trocou a Al-Qaeda pelo Estado Islâmico quando este emergiu. Rezgui estudava em Kairouan e se radicalizou em uma mesquita de uma área pobre da cidade. 

A abertura democrática, que tirou muitas amarras do discurso religioso, e a desilusão com o Ennahda abriram caminho para o Estado Islâmico, mas não atuam de forma isolada no recrutamento. Há na Tunísia, também, um descontentamento com os resultados da democratização. Se procedimentos democráticos como eleições parlamentares e presidenciais e a elaboração de uma constituinte são elogiados, não se pode dizer o mesmo do progresso econômico do país. 

A Primavera Árabe, onda de manifestações que atingiu diversos países da região a partir de 2011, nasceu na Tunísia. O próprio nome que o fenômeno ganhou de analistas e jornalistas indica que ele foi encarado como pró-democratização. O bojo da questão, no entanto, era outro: a pauperização de enormes contingentes da população, em sua maioria jovens, que chegaram à idade adulta sem qualquer perspectiva de prosperidade. As ditaduras eram o obstáculo à frente da promessa da democracia, sempre negada aos povos árabes por atores internos e externos, que apenas sonhavam com um regime no qual todos teriam chances iguais.

Essa realidade pouco mudou desde a queda de Ben Ali. Injustiça, opressão e falta de recursos continuam fazendo parte da realidade da juventude marginalizada tunisiana. A taxa de desemprego, de cerca de 17%, chega a 30% entre os jovens e no interior do país. No total, cerca de três quartos dos desempregados têm menos de 29 anos. “[Os jovens] ainda estão esperando por sua revolução e continuam sua busca por dignidade: liberdade sem dignidade é um conceito vazio”, disse ao site Muftah Mohamed Kerrou, professor de Ciência Política na Universidade de Tunis El Manar.

Aqui surge outra parte do apelo do Estado Islâmico: o grupo é visto por muitos como justo e capaz de produzir um sistema mais igualitário. Em dezembro, um homem com mestrado em Tecnologia, mas que atuava na construção civil por falta de opções, disse ao jornal The New York Times ver o ISIS como a única esperança para ter “justiça social”.

Em sua resposta imediata ao atentado, o governo da Tunísia tenta conter a pregação do radicalismo. Fechou ao menos 80 mesquitas consideradas extremistas e prometeu proibir partidos e instituições religiosas que pregam contra valores constitucionais. Nas palavras do presidente tunisiano, Beji Caid Essebsi, são ideias que “ameaçam o estilo de vida” tunisiano.

O governo tem razão ao combater os ideólogos do terror, mas sem incluir um componente social em suas ações e, assim, lidar com o terreno fértil no qual as ideias terroristas florescem, é improvável que a Tunísia consiga conciliar sua abertura democrática em curso com o islã político.

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